quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Imprescindível leveza

Estava irremediavelmente cansada das coisas do mundo, e das coisas do amor. Este último, concluíra por fim, depois de muito se lançar e acabar indo sempre de encontro a pisos dolorosamente áridos, lamentavelmente não estava em seu caminho. Não nesta vida. Esgotara-se. De tudo. De todos. Olhou todas aquelas coisas que juntara ao longo de toda uma vida, desde as paredes em dry wall do apartamento barato a cada mínimo detalhe. A cada copo ou prato, a cada quadro na parede, as almofadas, a televisão, o notebook, o celular de última geração, às coleções todas, de livros, de filmes, de lembranças trazidas do outro lado do mundo, da mesinha num canto, que reunia suas imagens de santos e entidades mais queridos e toda a sua coleção de incensos, numa ode ao sincretismo, coisa em que sempre havia acreditado por toda a sua vida, desde a infância. Olhou a coleção de dvds e discos que lhe era tão cara. Olhou cada objeto de arte e cada recordação e fotos de amigos, alguns vivendo hoje tão longe. E se perguntou: por quê? O que, no meio de tudo aquilo, lhe fazia realmente falta? O que lhe era de fato imprescindível? Realmente imprescindível? Nada, ou quase nada, concluiu. E sendo assim, esgotada e decepcionada, reuniu numa mochila surrada as poucas coisas que ainda acreditava precisar usar. Não ficou pesada, afinal. Olhou tudo aquilo pela última vez, sem conseguir sentir, sem conseguir chorar. Encostou a porta do apartamento e saiu sem rumo. Não sabia exatamente para onde se dirigia, mas sentia uma falta incrível do mar. E foi na direção dele que andou. Os cabelos soltos, batidos pelo vento, as sandálias baratas compradas na última ida à feira, o vestido leve, de estampa discreta, esvoaçando. Andou por muito, muito tempo, até alcançar a calçada que enfim a separava daquele mar imenso. Estonteantemente imenso, e tão, tão mais respirável. O vento batia e levava cada mágoa, cada ponta de cansaço, cada desentendimento e amizade perdida, cada amor que não chegara a passar de um embrião. Cada tentativa vã. Cada sentimento inútil, que só lhe fazia desgastar-se mais, e mais, e mais. Foi para junto de onde as ondas arrebentavam, e continuou a caminhar. As sandálias incomodavam, queria sentir a areia sob os pés. Era das poucas coisas que realmente podemos dizer que temos. As sensações do nosso corpo. Essa sensação da areia molhada sob os pés quando estamos à beira da praia. Arrancou as sandálias e atirou-as fora, e andou, andou, andou. A certa altura, ninguém à vista, desfez-se também do vestido, e seguiu margeando a arrebentação das ondas. O ventou lhe deu a sensação de levar tudo. De lavar tudo. De um frescor e de uma leveza que há muitos anos não sentia. Ventava mais forte agora. O sol estava se pondo, mas ela não sentia frio. Então, como num sonho, como se transformasse numa espécie de anjo, sem peso, sem dor, sem nada que lhe segurasse ou impedisse, suas pegadas no chão começaram a ficar mais suaves. Desfez-se da mochila. Àquela altura já não queria mais nada. Nada mais lhe era essencial. E enquanto andava, seus passos iam ficando menos e menos marcados na areia. Até que percebeu que não era só o peso das roupas ou da mochila que lhe faziam mais leve. Ela se desfazia, bem aos poucos, como poeira à beira do mar. A pele, o cabelo, tudo, tão leve, tão leve, tão... leve... O vento continuava soprando, e, junto ao barulho das ondas, eram agora as únicas coisas que lhe faziam sentido. Nenhum sofrimento. Nenhuma dor. Nenhuma decepção. Nenhum peso tomava agora conta do seu corpo, ou da sua alma. Lentamente, Maya continuou andando, e se desfazendo, e andando, até que seus últimos traços desapareceram no ar. Era assim que tinha que ser. Desde o princípio. Se alguém passasse por ali agora, não encontraria nada além da areia fina, sem marcas, e das ondas do mar, que continuavam arrebentando na costa. Aquele ir e vir incessante, que é parte da vida. De toda vida. Aquele desfazer-se e refazer-se constante. De novo. De novo. De novo. Maya talvez voltasse a se refazer em algum lugar, em algum momento, em algum tempo, sob uma circunstância qualquer. Mas isso agora não importava. Não importava mais. Agora era tudo calmo, e leve. Tão leve. Agora ela estava em paz.
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