sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Elara e a torre

"Drink up, baby, look at the stars
I'll kiss you again between the bars
where I'm seeing you there
with your hands in the air
waiting to finally be caught"
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Elara por vezes se abria como uma flor, linda, iluminada e vaidosa. Por vezes se fechava completamente, como a mais teimosa e tímida das ostras. É que já se havia deixado machucar tanto, tanto. Fechar-se e negar a si mesma os amores e os prazeres do mundo muitas vezes parecia ser a alternativa mais fácil, a mais segura. Elara não sabia que a segurança não existia. Não neste nosso mundo. Não sabia que arriscar-se era o único caminho. A única maneira de viver: de viver por inteiro. De ser plena, por dentro, e por fora.

Elara queria companhia, queria um amor. Um amor desses de fazer perder a cabeça, de fazer transbordar o peito machucado, de dar sentido à alma, de dar sentido, e cores, à vida. Mas toda vez em que arriscava colocar um dos pés para fora do seu mundo fortemente murado, logo se recolhia outra vez, assustada e insegura. Lá fora parecia que o chão dançava, e ela então se desequilibrava, perdia os passos, o ritmo, a música, a dança. A vida.

Ela queria se aproximar das pessoas que mais lhe interessavam, e dizer coisas. Dizer que o seu nome era o nome da décima segunda lua de Júpiter, que gostava das estrelas, que sabia o nome de muitas delas, e de várias constelações e aglomerados. Queria dizer que sua formação estelar favorita eram as Plêiades, formada por sete estrelas irmãs. E que aquela manchinha bem pálida e discreta, aquela perto da cauda da constelação de Escorpião, tão semelhante a ela mesma por sua discrição, chamava-se Messier 7, ou Aglomerado de Ptolomeu. Mas isso talvez não interessasse a mais ninguém. Queria dizer que gostava de perder-se por horas olhando o mar, e sentindo o vento bater nos cabelos. Que amava a natureza e os animais, e que tinha pensado em ser veterinária ou bióloga marinha. Queria dizer que gostava de fazer longas caminhadas sozinha no parque, pensando, pensando, e ouvindo Elliott Smith no celular. Dizer que o seu grande sonho de criança era ser uma bailarina profissional, e viver dançando e viajando pelo mundo todo com sua arte. Dizer que amava arte. E que também adoraria passar a vida toda estudando e frequentando ambientes acadêmicos. Queria dizer que era fascinada por aviões, especialmente os modelos antigos, e os militares. Mas talvez... isso não interessasse a mais ninguém.

Um dia, enquanto olhava por entre as frestas, Elara viu alguém e se apaixonou. Como nunca na vida havia se apaixonado. Era um amor desses de fazer perder a cabeça, de fazer transbordar o peito machucado, de dar sentido à alma. De dar sentido, e cores, à vida. De repente ela sentia que tudo estava no lugar onde deveria estar. Exatamente onde deveria estar. Menos ela. Ela que erguera uma torre tão forte e tão alta em torno de si própria, e que agora já não sabia mais como sair. Amava desesperadamente, mas não podia, não conseguia estar perto daquele que era o objeto de sua grande paixão. Trocaram apenas alguns olhares e sussurros por entre aquelas frestas.

Então, apavorada, Elara procurou algo com que pudesse construir uma escada até o alto, e então escapar da gigantesca torre que erguera ao redor de si. O trabalho foi lento. Muito lento. E ela tinha medo de que, ao chegar lá em cima, ele talvez já não estivesse mais lá. Mas continuou firme, constante, com as forças que só a paixão é capaz de dar às pessoas. E enfim a escada ficou pronta. Postou-se no último degrau e olhou em volta. O vento soprando forte em seu rosto e despenteando os cabelos longos, desfraldando o longo vestido branco. O sol havia se posto há poucos minutos, e ela parecia estar agora bem perto das estrelas. Era quase como se pudesse tocá-las. E a vista lá de cima era algo incrível. Mas onde estaria ele?

Cuidadosamente, amarrou, uns aos outros, pedaços de cordas, de roupas, de lençóis que trouxera consigo, rezando para que aquilo fosse o suficiente. E começou a descer com todo cuidado. Mas... onde estava ele? Será que não a correspondia? Será que a luz dos seus olhos e a maciez da sua voz, as palavras sussurradas por entre as frestas daquela muralha, não o haviam tocado, como ela imaginara? Muito angustiada, continuou a descer com cuidado. Mas a certa altura, reparou em algo que antes não havia notado. No lugar onde antes estava o rapaz, erguia-se agora uma outra torre, um pouco mais baixa do que a dela, e aparentemente mais recente.

Pôs, enfim, os pés no chão. Como era bom sentir a grama sob os pés descalços, e um tanto machucados. Chamou-o pelo nome. Nenhuma resposta. Chamou outra vez, e ainda outra. Nada. Nem ao menos uma espécie qualquer de eco. Foi então que viu aquele pedaço de papel já meio amarelado pelas intempéries, pregado a uma pedra, à altura dos olhos. Aproximou-se. A assinatura era dele. Elara, ele dizia, eu esperei por você. Mas tive medo. É que eu já me deixei machucar tanto, tanto. Eu quis um amor. Um amor desses de fazer perder a cabeça, de fazer transbordar o peito machucado, de dar sentido à alma. De dar sentido, e cores, à vida. Mas quanto mais você demorava, mais o meu medo crescia. Erguer esta torre em volta de mim foi a única maneira que encontrei para me proteger. Para não me ferir mais. Não podemos estar juntos. Nossos espinhos acabariam por ferir um ao outro. Espero que entenda. Espero que respeite esta torre que fiz para a minha própria segurança, e para a sua. Para o meu próprio bem, e para o seu. Não procure subir. Não procure ir além dos limites que eu lhe impus. Esqueça-me. Será o melhor para os dois. Cuide-se bem, e seja feliz. No fim da mensagem, bem lá embaixo, e com uma caligrafia mais apressada, ela leu: tome aquele banho de mar que teríamos gostado tanto de tomar juntos.

Elara estava perplexa. Mortificada. Arrancou da pedra aquele papel, e com ele nas mãos, andou sem destino por muito, muito tempo. De vez em quando avistava um par de torres altas. Até que elas foram escasseando, pouco a pouco. Sentia a brisa, o cheiro e a proximidade do mar. Ah, o mar. O alívio para todas as dores que dançavam sem licença dentro dela. Dores que ela ainda não conseguia compreender, e nem nomear. Àquela altura o céu já começava a clarear, bem aos poucos. Andou na direção do mar, devagar, ainda com o papel nas mãos. A espuma das ondas tocou seus pés. O vento estava forte, agitando-lhe os cabelos e o longo vestido branco. Descalça, foi adentrando cada vez mais aquela imensidão salgada. De repente nada mais importava. De repente, tudo por que ela ansiava era pertencer àquela imensidão azul. Tão calma. Tão bonita e tão calma. Foi quando uma mão tocou seu ombro direito. Se pudesse, ela teria saltado, tamanho o susto.

Elara, disse ele. Eu te esperei. Eu sabia que viria para cá. Tive muito medo, e construí aquela torre em volta de mim. Mas então tudo deixou de fazer sentido. E eu escalei a torre. E saí. E agora, Elara perguntou, agora faz sentido? Eu quis um amor, ele disse. Um amor desses de fazer perder a cabeça, de fazer transbordar o peito machucado, de dar sentido à alma. Ela o olhou nos olhos úmidos enquanto ele continuava. Quis um amor de dar sentido, e cores, à vida. E ele não estava dentro da torre. Ele está aqui?, ela perguntou. Está, ele disse. Eu? Perguntou outra vez. Eu, ele disse. E encheu as mãos com a água do mar, e encharcou o vestido e os cabelos dela. Ela encheu as mãos também, e o encharcou inteiro. As risadas ecoaram longe. E foram ouvidas dentro das outras torres, não muito longe dali.

Naquele mesmo dia, bem mais tarde, se não houvessem prestado atenção apenas um no outro, os dois teriam visto dezenas de cordas sendo atiradas para fora das torres.



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Grande parte de toda dor vem dos espinhos, e dos muros, com que precisamos nos armar e nos cercar para dar conta dessa vida.

Ouvindo: Elliott Smith, Between the Bars 

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