terça-feira, 23 de junho de 2015

O véu desfiado de Maya e as certezas rasas de Paloma

Antes devo dizer: não existe aqui a intenção de se fazer uma crítica do livro, em qualquer grau, ou da filosofia da personagem principal. O que existe é o desejo de fazer um paralelo entre dois mundos que navegam entre uma ou outra certeza presumida, mas, reconheçam o fato ou não, encontram-se extremamente fragilizados e permeáveis diante de um mundo absurdamente vasto do qual tão poucas coisas ainda conhecemos, e diante do quão pouco ainda somos capazes de afirmar sobre a nossa própria natureza, sobre o funcionamento químico, psicológico, patológico de nossas próprias mentes e corpos. Sabe-se, ainda, pouco demais para arriscar-se num mundo de certezas. Num mundo de certezas rasas. Isso se ainda não levarmos em conta o caráter extremamente mutável e adaptável das coisas. Até as conexões neurais mudam de maneira e em velocidade impressionantes no sentido de se recriar, de se refazer, de construir novas conexões e, quem sabe, novos sentidos. Tudo é relativo, Einstein já dizia, talvez até mesmo sem suspeitar totalmente da irrespirável grandeza do alcance e da abrangência dessa implicação.

Não. Isto não é uma crítica.

Em A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery, Paloma é uma francesinha de doze anos, membro da alta sociedade, e incrivelmente dotada intelectualmente para a sua idade. Paloma mantém diários, desenvolve pensamentos, ainda que não se aprofunde verdadeiramente em grande parte deles, ou não tenha interesse em dedicar-se a essa tarefa, e é a imagem perfeita do niilismo e do ateísmo. Está decidida a dar fim à própria vida no dia de seu décimo terceiro aniversário porque, de acordo com seu conjunto de valores e de certezas, não existe sentido em viver. Não existe finalidade alguma em seguir vivendo, em passar por todas as etapas de uma existência mediana. Ou de qualquer tipo de existência. Ela certamente concorda em todos os níveis com aquela afirmação esteticamente tão bonita e tão angustiante de Shakespeare de que "a vida é uma história contada por um louco, cheia de som e fúria, significando nada." De posse dessas certezas, ela planeja tudo nos mínimos detalhes.

Mas a certeza de Paloma é... a certeza de Paloma. É todo um conjunto de afirmações e de crenças que fazem sentido na cabeça dela. Para ela. No mundo dela. Da mesma maneira, existem outras sete bilhões e trezentas certezas absolutas se movendo aí pelo planeta nesse momento. Outras sete bilhões e trezentas concepções de vida, outros sete bilhões e trezentos motivos para seguir vivendo, ou para decidir interromper essas vidas. Certeza é um bicho difícil de domesticar. A minha certeza, o meu conjunto de valores e crenças, acaba ali onde esbarra na sua, ou na certeza de outra pessoa. Tudo o que temos de fato nas mãos é um punhado de senso comum. Isso sim. E o que já pode ser provado cientificamente. O resto é especulação e estudo em desenvolvimento. E se, daqui a dois meses, ou dois anos, Paloma encontrar o amor e decidir que, ah, agora a vida faz sentido? E se alguma descoberta fantástica na ciência nos fizer acreditar que agora vale a pena viver? Mas e se, ao contrário, mantivermos a vida toda os olhos parcialmente vendados dos lados, percebendo como verdade só o que está na frente, só o conjunto de coisas e de valores que escolhemos perceber, até por uma compreensível questão de sobrevivência e de auto-proteção? E se nos fechamos numa certeza de maneira desavisada, e passarmos a vida sem descobrir que ali do outro lado existe alguma outra coisa que vai fazer tudo valer a pena? Sabemos tão pouco. Tão demasiadamente pouco.

"Because we all have wings
but some of us don't know why."

Minha segunda parte favorita de "Never Tear Us Apart". Todos temos asas. Mas alguns de nós não sabem por quê. Alguns de nós não sabem sequer que as têm. E é aí que entra o meu conjunto de valores, crenças e certezas. Essas asas, na minha concepção, envolvem a suspeita de um conhecimento mais amplo e complexo, envolvem o sexto sentido e os sinais magnéticos que estão aí no ar para serem captados e processados, envolvem milhões de possibilidades lá fora e ao redor de nós, e dentro de nós. Envolvem tudo e todo o poder que de alguma maneira sentimos que possuímos, e que nos cerca, mas que a maioria tem, talvez, um certo receio de abordar ou de afirmar. "Há mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe vossa vã filosofia." Frase também de Shakespeare. É nisso o que acredito. Segundo essa linha de pensamento, pode até mesmo ser que exista de fato um deus. Por que não? Tudo depende da definição que dele se faz. Novamente, tudo é relativo.

Bem, percebe-se, sou extremamente mística e espiritualista desde que me entendo por gente. Sabe aquele amiguinho imaginário que quase todo mundo tem aos três, quatro ou cinco anos? O meu se chamava Krishna, vai lá saber de onde eu tirei esse nome nessa idade, numa casa de católicos perfeitamente devotos e acomodados nos ritos da Igreja. O pequeno Krishna me acompanhava nas brincadeiras, me fazia companhia, me divertia, e desapareceu lá pelos seis anos de idade. Mais ou menos quando eu cismei que sete era o número mais bonito do mundo e que ter sete anos seria a melhor coisa que poderia me acontecer. Mas essa é outra história, risos. Então, embora eu me considere agnóstica, sou extremamente mística, espiritualista, forte simpatizante da filosofia oriental e do Caminho do Meio. Uma das bases mais fortes de todo o meu conjunto de valores é o progresso e desenvolvimento espiritual e humano, que é também o pilar central da doutrina espírita kardecista. Sou inclinada a admitir a possibilidade das reencarnações, embora não diga que acredito nelas. Sou aquela mística que conhece bem a sua tendência pisciana a tirar os pezinhos do chão a todo momento, e procuro me dominar muito nesse sentido. Mas quando posso, ou me permito, adoro me deixar levar. De modo que a falta de sentido que define o conjunto de crenças da pequena Paloma opõe-se fortemente aos meus sentidos, a essa minha sensação interna de que existe algo mais, de que existe algo maior. 

Já tive pequenas grandes provas dignas de Chico Xavier, já tive a oportunidade de dar atenção a sinais que me revelaram coisas importantes mais tarde, já pensei em pessoas e elas imediatamente apareceram na minha frente ou deram notícias, já tive sonhos incríveis e reveladores, já tive sonhos lúcidos, já deixei de me machucar porque ouvi uma porta batendo dentro da casa vazia, sem a menor corrente de vento, já vi um palito pular de repente do alto do aparelho de tevê e cair nos meus pés, outra vez sem que houvesse nenhuma corrente de ar, já liguei muito aparelho de som e tevê só de passar em frente, com a eletricidade do meu corpo, e já quis muito aprender mais sobre esse tipo de magnetismo que existe e permeia tudo e todo mundo. Até objeto voador não identificado eu já vi nessa vida, com minha irmã por testemunha, risos. Quem entende de avião e trabalha com aeronaves me garantiu que não se tratou de nenhum tipo de aeronave conhecida. Mas essa é outra história. Bem, não tenho mais sonhos reveladores, nem vejo gente morta feito no filme, mas tenho muito da mediunidade que tinham minha mãe e minha tia-madrinha, e pretendo desenvolver isso um dia. Agora não, não é o momento. Agora é o momento das coisas práticas e objetivas.

 Mas vou lendo um livro ali, fazendo umas pesquisas aqui, já li muito sobre religiões, e ainda leio, e sempre gostei muito do nome Maya, pensava em dá-lo a uma eventual filha, talvez. Mas há cerca de quinze anos eu o usei como apelido de internet pela primeira vez, ainda na época do icq. Isso foi logo depois de ler o livro homônimo de Jostein Gaarder, que conseguiu a proeza de juntar num mesmo livro misticismo, religião, arte, astronomia, filosofia, história, cultura e dança flamenca. Aquilo foi demais pra mim, risos. Tudo o que eu gosto e tanto me interessa num livro só. E foi assim que Maya nasceu, ou La Maya, de La Maja Desnuda, obra de Goya, que virou meu nome artístico de bailaora flamenca. E eu fui descobrindo em mim mesma, aos poucos, características da Maya da filosofia indiana, e do significado das duas obras de Goya juntas, a Maja vestida e a Maja desnuda, e o significado todo do véu de Maya, do véu que se desvela, que se descobre: a queda da ilusão. A morte da ilusão. O nascimento do conhecimento. O poder de confundir um indivíduo com a ilusão, mas também o de revelar-lhe a verdade. Incorporei isso na minha história de vida de um jeito bonito e significativo, muito significativo pra mim mesma. Até mesmo porque a minha carta pessoal no tarô é a de número 16 (1+6), A Torre, ou Casa de Deus - O Arcano da Libertação e da Construção. E quando eu descobri essa carta, tudo, tudo fez sentido. A imagem que eu sempre fiz de mim mesma como uma escada ou edifício em incessante construção... a imagem da Torre sendo fulminada por um raio e destruída... todas as minhas provações, desde que eu era criança... todas as vezes em que, levada pelo trastorno (bipolar, borderline, chame agora do que quiser), eu desci até o inferno, e consegui retornar... e toda a imensa força que eu aprendi a reconhecer em mim mesma, a cada vez que eu voltava do inferno. A cada vez em que era destruída, mas continuava a procurar me reerguer, me reconstruir... tudo fez sentido... abertura.. conhecimento... quebra de limites... libertação para um novo início... E eu entendi que essa era a minha batalha nessa vida. Entendi que esse era o meu sentido particular, de fato: a construção, a queda, a reconstrução, o retorno das chamas, a morte de toda ilusão, o conhecimento. E tudo isso faz todo o sentido se eu juntar o significado de um sonho que eu tive. Eu só gostaria de saber se eu já passei pela minha coruja de pedra... se estou passando... ou se ainda vou passar...

O que sei é que estou aqui, essa pisciana com ascendente em peixes, filha de Iemanjá, sobrinha de coração de Iansã, rainha dos raios e das tempestades, cada vez mais forte, cada vez mais espiritualizada, cada vez acreditando mais, e sem dúvida alguma vendo muito sentido em todo esse caminho difícil de superação e de construção pessoal. Achando que tudo vale a pena sim. Pagando pra ver, sempre. Sempre. E se do outro lado não houver nada, já valeu muito essa passagem pra melhor montanha russa da vida.

Uma única coisa me faria duvidar de todo o sentido que essa vida forte e linda tem pra mim: a solidão e a falta de amor. Sem isso, nada faz sentido. Essa seria a falta de sentido que me colocaria no mesmo patamar da pequena Paloma de Muriel Barbery: se eu não posso dividir, que sentido existe em ter?

"A felicidade só é verdadeira quando compartilhada." É, é isso aí, aquela mesma e boa velha frase...

Sobre todo esse misticismo e mistério que a gente vai incorporando à vida da gente, e que vai tomando forma e ganhando um sentido bonito... tem uma frase de Milan Kundera, em "A Insustentável Leveza do Ser", que eu guardo comigo, com todo carinho, há anos... ela diz algo assim: "É errado censurar a literatura por ser fascinada por misteriosas coincidências... mas é certo censurar o homem por ser cego a tais coincidências em sua vida diária. Sendo assim, ele priva sua vida de toda uma dimensão de beleza."