sábado, 21 de março de 2015

De poços, de fundos e de trampolins

"A gente morre um pouco em cada poço."
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Deixo aqui este pequeno texto de Caio Fernando Abreu. Pela mensagem de força e de fé. Por cada poço em que tenho resvalado, ou nos quais tenho, conscientemente, me atirado. Certa da queda, do estilhaço, da dor dilacerante. Mas também pela certeza da força que carregamos. Pela possibilidade do reerguer-se. Pelo próximo passo, o primeiro de tantos outros. Pelo caminho que, sinto, ainda e sempre, seguirá. Pelo movimento incessante, que aprendi a observar nos astros. Pelo aprender, sempre. Pelo crescimento que nos aguarda ali na esquina. Pela leveza que um dia haveremos de encontrar, e que no fim, também o sinto, só será verdadeira e plena quando, com grande dificuldade e dor, como em qualquer parto, surgir da aridez e do peso pelos quais sei que devemos passar. Sempre. E sempre. Até que.
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"Nos poços
Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê."
Caio Fernando Abreu, O Ovo Apunhalado

sexta-feira, 20 de março de 2015

Trânsito

"Ai, Ricardito, essas breguices que você me diz."
(Mario Vargas Llosa, Travessuras da Menina Má)

Hoje eu me apaixonei.

Atravessava, com passos rápidos, de quem sabe bem onde quer chegar, a extensão do Parque Municipal Américo Renné Giannetti. Ele passou por mim, também apressado. Alto, bonito, charmoso, barba bem cuidada, bem vestido. Usava um terno. Sempre fui louca por homens bem vestidos, ou usando um bom terno. Então, nossos olhos se encontraram. E não se largaram. Por longos segundos, como se um estivesse reconhecendo o outro. De outro lugar, de outro tempo, quem saberia dizer. E importa? Nos olhamos, sérios num primeiro momento. Que olhos. Então, quase sem perceber, me desarmei e me abri num sorriso, meio encantada, meio envergonhada. Ele sorriu de volta. Um sorriso aberto, desses que se refletem nos olhos, e convidam. Sorri uma vez mais, e senti que o fazia com um certo brilho nos olhos, com sinceridade plena, com uma entrega própria daqueles que reencontram algo de valor inestimável, há tempos perdido. Continuamos a sorrir e a nos olhar, completamente alheios a qualquer outro tipo de trânsito. Até que um passou pelo outro. O trânsito despertou, seguiu. Abaixei a cabeça, e ri sozinha, pela delícia daquele momento, daquele encontro que nenhum dos dois previu. Então, me virei para vê-lo uma última vez. Não queria deixá-lo ir embora. E vi que ele tinha se virado, e também me olhava de volta, sorriso aberto e convidativo. Sorri outra vez, com a boca, com os olhos, com a alma, com o corpo inteiro. Não sei quanto tempo durou. Não sei por que não parei, por que ele não parou, por que não nos aproximamos e nos abordamos. A chance se foi. Mas por um minuto eu fui dele. Por um minuto ele foi meu. Por um minuto, o resto do mundo parou. Por um minuto, tudo fez sentido.

* Texto escrito em 10 de março de 2015.