domingo, 30 de agosto de 2015

Quando eu morrer, filhinho

Onze anos hoje, minha mãe. Todo o meu amor pra ti, onde estiveres. De resto, tu bem o sabes.

"Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é."

(O Guardador de Rebanhos, Fernando Pessoa)

Split

Tive minha fase de poeta entre os dez e os treze anos. Não vingou. Já era perdidamente apaixonada por contar histórias desde os sete anos de idade, quando escrevi e ilustrei meu primeiro livrinho, e com ele ganhei uma medalha de primeiro lugar num concurso de literatura infantil promovido pelo SESI. Lembro perfeitamente a ansiedade e o orgulho dos meus pais, que no dia da premiação já sabiam do resultado, mas quiseram me fazer uma surpresa. E eu demorei a acreditar que era o meu nome que chamavam lá na frente. Engraçado como as coisas mais marcantes da minha vida aconteceram aos sete, aos dezessete, aos vinte e sete... Mas o caso é que em 2009 eu passava por uma fase longa de angústia e depressão intensas, quando a ideia pra um poema me veio um dia durante o banho, como em sussurros psicóticos. Como se eu tivesse febre e delirasse. Saí rapidinho do banho e anotei tudo. Queria intercalar frases que seriam sussurradas por duas entidades que de alguma maneira eram uma só, ou por um anjo e um demônio, cada um mergulhado em seu monólogo, mas juntos sob a luz de um palco. Eram frases intensamente otimistas misturadas a outras que eram justamente o oposto. Eu queria intercalar as frases, como numa disputa entre bem e mal, fazer com que a ideia como um todo fizesse algum sentido, e ainda usar rimas. Trabalho árduo e confuso. Risos. Desse caos total nasceu Split. Um poema que poderia ser lido linearmente, como um todo, ou só as linhas pares, e depois só as ímpares. Queria que essa dualidade ficasse clara, e me preocupei muito em terminar tudo com uma frase que fosse otimista. Porque apesar de qualquer depressão, sou alguém otimista por natureza, e acreditava muito em uma melhora. Em uma cura qualquer, e eu ainda não sabia exatamente de quê. Poucos meses depois, no princípio de 2010, eu seria diagnosticada como bipolar. Split então passou a ter para mim um sentido quase místico. Embora meu diagnóstico tenha sido corrigido há três meses para um Transtorno de Personalidade Borderline, e eu tenha ingressado oficialmente no time dos Borders, Split ainda faz todo um sentido pra mim. Ainda é, para mim, o que eu já escrevi de mais especial e significativo. E, sem dúvida nenhuma, o que mais me deu trabalho. Nunca foi publicado na rede, já que na época eu já tinha deletado meu blog Cena7, do que me arrependo muito, e ainda não tinha criado um outro. Split vai agora ter o seu momento "debut virtual". 

O único problema é que a ideia pra esse poema me chegou em inglês, e em inglês ela foi executada. Ainda não fiz nenhum tipo de tradução, acho inclusive que daria mais trabalho até do que o próprio poema. Seria todo um outro poema. Mas um dia eu me arrisco e faço uma tradução. ;-)

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split

down on her knees

under daylight she lies
she whispers and cries
over her future and sees
and shouts
her lies
and screams among flames
on a calm, deep lake
her fever is high
so deep like her past
it is so dark
but still clear
inside her like
no one can hear
hell, she lies
when she cries
to herself
into this mirror
every smile she fakes
so she closes her eyes
and it feels like she dies
and she dreams
among demons and madness
she is an angel
she is evil
she is strong
like Saturn and sphinxes
she can do anything
she is lost
like Ismalia
between day and night
so she spreads her wings
where Sun gives birth to Moon
and flies, flies
no light and no hope
it feels like she is free
and the voices won't stop
she will find the cure
no mercy, just half life
a bright day she sees 
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sábado, 29 de agosto de 2015

Transparências e diversidade

Deixar transparecer parte de toda a dor que é inegavelmente inerente ao nosso processo de crescimento enquanto indivíduos, enquanto seres humanos, não implica necessariamente em fraqueza, em falta de visão, de esclarecimento, de evolução ou de fé em algo. É talvez o que nos humaniza, o que nos torna acessíveis e empáticos, é o que caracteriza a sensibilidade, a essência e a personalidade de cada um, criando diversidade e riqueza dentro da espécie humana, e um campo de aprendizado vastíssimo.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Hidden numbers

"There is a number hidden in every act of life, in every aspect of the universe. Fractals matter that there's a number screaming to tell us something. I guess I try to tell them that numbers are a door to understanding a mistery that's bigger than us. How two people, strangers, come to meet. There's a poem by a Venezuelan writer that begins... 'The earth turned to bring us closer. It turned on itself and in us until it finally brought us together in this dream.'" 

(21 Grams, Alejandro González Iñárritu, 2003)

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"Há um número escondido em cada ato da vida, em todos os aspectos do universo. Fractais indicam que existe um número gritando para nos dizer alguma coisa. Eu acho que tento dizer a eles que os números são uma porta para a compreensão de um mistério que é maior do que nós. Como duas pessoas, estranhas, venham a se conhecer. Há um poema de um escritor venezuelano que começa assim... 'A Terra girou para nos aproximar. Ela girou sobre si mesma e em nós, até que finalmente nos reuniu neste sonho '"

(21 Gramas, Alejandro González Iñárritu, 2003)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Ilusão

"Uma vez eu tive uma ilusão E não soube o que fazer Não soube o que fazer Com ela Não soube o que fazer E ela se foi Porque eu a deixei Por que eu a deixei? Não sei Eu só sei que ela se foi"
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segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Borders

Pros amigos, familiares e amores que eu já prejudiquei e chateei muito nessa vida, para aqueles que eu infelizmente acabei perdendo, e pra quem leu meu texto ontem no facebook e acredita que o meu problema seja uma simples depressãozinha que vai passar com mudança de ares e exercício, ou que eu estava exagerando em algum ponto. A coisa é "um pouquinho" mais complicada do que parece. Quem sofre com esse transtorno precisa de muita paciência, carinho e compreensão da parte dos outros. Ressalto que o transtorno se manifesta de maneira diferente para cada pessoa. Não somos todos iguais, seguindo a receitinha que Ana Beatriz Barbosa passou aí, não. Eu, por exemplo, sou bastante calma quando estou com os amigos ou em situações sociais, não me considero nada, ou praticamente nada, ciumenta (o que já foi comprovado por ex namorados) e definitivamente não sou dada à efusividade e aos excessos na fala. Entre outras coisas. Mais uma vez: compreensão, paciência e carinho fazem toda a diferença.
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sábado, 22 de agosto de 2015

Resistência

"Não me entrego sem lutar
Tenho ainda coração
Não aprendi a me render
Que caia o inimigo então"
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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Resenha: We Should All Be Feminists

Resenha: We Should All Be Feminists, Chimamanda Ngozi Adichie
Agosto de 2015

Chimamanda é tão linda, por dentro e por fora, mas tão linda, em sua maneira de se expressar, em suas ideias, que eu nem sei por onde começar a comentar esse curto livro baseado numa palestra dada por ela numa conferência anual em dezembro de 2012. Pra começar, logo de cara me senti ligada a ela por sermos contemporâneas. Ambas do ano de 77. Boa safra, risos. Dela até agora só tinha lido Hibisco Roxo, e ficado encantada com sua escrita e sensibilidade. O próximo será o aclamadíssimo Americanah. Estou super curiosa e ansiosa em relação a ele. Mas, pra começar a falar um pouquinho sobre o que achei das ideias de Chimamanda sobre feminismo, quero falar um pouquinho da minha própria experiência com o tema.

Foi muito cedo na minha vida, ainda criança, que eu descobri que era feminista. Que tinha ideias extremamente feministas. Se alguém dissesse algo levemente machista na minha frente, lá vinha eu me intrometer na questão com ideias que eu julgava certas, apropriadas e coerentes com o nosso tempo que, afinal, visivelmente não era mais a idade média já fazia um tempinho. Se meu pai estivesse na roda, ele já avisava à vítima: "cuidado que essa aí é ferrenha, hein!" No que eu achava graça. E era mesmo. Cheguei mesmo, por volta dos 17 ou 18 anos, a esboçar e começar a escrever um livro que tinha o machismo e o feminismo como temas centrais, ambientado no século XIX. Era sobre uma moça inteligente que queria estudar, não se casar, ser livre e correr o mundo, mas o pai obviamente se opunha às ideias e vontades dela. Acabei abandonando a história pela metade, como dezenas de outras que eu havia começado, quando a depressão entrou e se instalou na minha vida. Mas o fato é que o feminismo sempre esteve aqui no meu sangue, circulando nas minhas veias e por todo o meu corpo. Nunca fui daquelas radicais. Radicalismo não é a minha, nunca foi. Sempre estive em busca de visões de mundo mais centradas, equilibradas. Talvez eu ainda escreva aquele livro, aproveite uma ou outra ideia, descarte algumas, quem sabe? De volta a Chimamanda. Que vontade que me deu de destacar aqui mil trechos do que ela escreveu sobre o tema! Que clareza de pensamento, que sensatez, que mente privilegiada ela tem! Nem o bom humor lhe falta!

"Em 2003, escrevi um romance chamado Hibisco roxo, sobre um homem que, entre outras coisas, batia na mulher, e sua história não acaba lá muito bem. Enquanto eu divulgava o livro na Nigéria, um jornalista, um homem bem-intencionado, veio me dar um conselho (talvez vocês saibam que nigerianos estão sempre prontos a dar conselhos que ninguém pediu). Ele comentou que as pessoas estavam dizendo que meu livro era feminista. Seu conselho — disse, balançando a cabeça com um ar consternado — era que eu nunca, nunca me intitulasse feminista, já que as feministas são mulheres infelizes que não conseguem arranjar marido. Então decidi me definir como 'feminista feliz'. (...) De qualquer forma, já que o feminismo era antiafricano, resolvi me considerar 'feminista feliz e africana'."

"E se criássemos nossas crianças ressaltando seus talentos, e não seu gênero? E se focássemos em seus interesses, sem considerar gênero?"

"Algumas pessoas me perguntam: 'Por que usar a palavra ‘feminista’? Por que não dizer que você acredita nos direitos humanos, ou algo parecido?' Porque seria desonesto. O feminismo faz, obviamente, parte dos direitos humanos de uma forma geral — mas escolher uma expressão vaga como 'direitos humanos' é negar a especificidade e particularidade do problema de gênero. (...) Uma vez eu estava falando sobre a questão de gênero e um homem me perguntou por que eu me via como uma mulher e não como um ser humano. É o tipo de pergunta que funciona para silenciar a experiência específica de uma pessoa. Lógico que sou um ser humano, mas há questões particulares que acontecem comigo no mundo porque sou mulher. Esse mesmo homem, a propósito, com frequência falava da sua experiência como homem negro."

"A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura."

"Sou feminina. Sou feliz por ser feminina. Gosto de salto alto e de variar os batons. É bom receber elogios, seja de homens, seja de mulheres (cá entre nós, prefiro ser elogiada por mulheres elegantes)."

Eu também, Chimamanda. Eu também. O mais engraçado é que, de todos os elogios e olhares que já recebi, dos dois gêneros, mas na maioria esmagadora, de homens, o que mais me deixou realmente lisonjeada foi o olhar demorado que ganhei na rua de uma mulher que eu achei super linda, bem vestida, estilosa e muito elegante. O tipo de mulher que eu quero ser na vida. Se ela era lésbica, se era bi, não interessa. E aqui não vem ao caso que, por acaso, eu seja bi. De verdade. A questão é que ela era exatamente o que eu tenho por modelo de beleza. Esse tipo de elogio, sim, valeu por todos os outros que já ganhei na vida. O que nos leva ao fato de que não, as mulheres não se vestem em função dos homens. Ao menos comigo não é assim. Posso afirmar de mim mesma exatamente o que Chimamanda afirma de si: "O 'olhar masculino', como determinante das escolhas da minha vida, não me interessa."

Por fim, penso em minha mãe, na pessoa linda, talentosa e brilhante que ela era. E então entendo de onde vieram meus primeiros pensamentos feministas. Minha mãe não foi radical, não queimou sutiã na praça, não parou de se depilar (gente, pra que mesmo esse radicalismo todo? Alguém se sente realmente bem fazendo essas coisas e vivendo dessa forma? É isso mesmo que significa feminismo? O feminismo não deveria visar justamente o respeito às questões da mulher e seu bem estar?). Não, ela não foi dessas radicais, mas sabia se colocar no mundo do jeito dela, com base em tudo o que ela acreditava. Sabia se respeitar. Gostava de cabelo curtinho, como eu gosto. E os usou durante toda a juventude, até se casar. Casou-se no civil e na igreja, como convém a uma boa moça, sim. Mas se casou de vestido preto no civil. E de vermelho escuro na igreja. Um escândalo na época, e até mesmo ainda hoje. Minha mãe foi minha primeira heroína. Meu primeiro modelo de mulher independente, segura, moderna, uma mulher que se respeitava. Foi, e sempre, sempre será. Onde quer que esteja agora.

Pra finalizar, este livro nos traz uma excelente notícia: 

"Eleito um dos dez melhores livros do ano pela New York Times Book Review e vencedor do National Book Critics Circle Award, Americanah teve os direitos para cinema comprados por Lupita Nyong’o," ( Emoticon heart ) "vencedora do Oscar de melhor atriz por Doze anos de escravidão."

Agora é aguardar mega ansiosamente para ver a história nas telas!

sábado, 15 de agosto de 2015

Do not go gentle

Do Not go Gentle Into That Good Night
Dylan Thomas
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"Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rage at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.
Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.
Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.
Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.
And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light."

Sobre escolhas e manipulação

Estava conversando online com uma amiga essa semana, e surgiu um tema que eu senti necessidade de discutir para além do tópico de facebook em que estávamos nos comunicando. Eu admiti que assistia o canal da Globo, um ou outro programa, ou partes de programas. E logo pensei comigo: que espécie de medo deveria ter eu de consumir notícias supostamente manipuladas e tendenciosas (muitas o são de fato) e algum eventual entretenimento? Será que eu não vou saber filtrar dali o que me interessa, o que me faz bem, o que não representa para mim uma perda de tempo? Será que eu não vou ser capaz de ser crítica e de levar comigo somente aquilo que for realmente interessante e edificante de alguma maneira? Será que a minha capacidade crítica, será que o meu discernimento andam assim tão falhos?

Admiti que vejo, sim, o telejornal da tarde na Globo. E gosto. Acho leve, âncoras simpáticos, clima bem humorado, matérias variadas. Ora, se os telejornais e a programação televisiva são manipulados e tendenciosos, bem como muitos veículos de informação impressa, sinto informar que a política é também um meio inteiramente manipulado, todo e qualquer tipo de propaganda é igualmente uma tentativa descarada de manipulação, e durante a maior parte do seu tempo existe algum tipo de manipulação tentando agir sobre você. A questão não é nem procurar fugir de toda essa estratégia, porque praticamente não se tem mesmo escolha: é optar por aquela que mais lhe convém, ou melhor: aquele tipo de manipulação que menos vai lesar você, depois de tudo colocado na balança.

A gente não está aqui para ser servida, entretida, adulada, satisfeita, o mundo não tem nos provado de maneira alguma que essas são as funções dele. A lei que impera ainda é a lei da selva, do "eu ganho e você perde", ainda não se descobriu um jeito de fazer isso de maneira que todos saiam ganhando. As ferramentas que lá no início eram tacapes, armas brancas, armas de fogo, hoje em dia se sofisticaram e estão aí implícitas na economia, na política e na sociedade em geral em forma de estratégias, verbais ou não, em forma de manipulação, pura e simples. E enquanto não conseguirmos uma maneira de viver sozinhos e de fabricar nosso próprio consumo, todo ele, vamos ter que nos sujeitar sim a várias formas de manipulação, desde o poder econômico e político até a escolha de tudo o que consumimos, sejam as opções ruins, péssimas ou piores ainda. Ou sejam elas, com sorte, eventualmente boas ou até excelentes. 

E aí é que entra o nosso poder de escolha. É nesse âmbito que se revela o nosso poder. Extremamente limitado e castrante, é verdade. Mas ainda assim é o poder de que dispomos, e não podemos e não vamos abrir mão dele. O poder de julgar, de criticar e de fazer escolhas com base nos resultados. Ora, somos seres que pensam de maneira crítica, que são capazes de ouvir uma notícia e analisar aquilo ou somos meras esponjas esparramadas na frente da tevê? Basta colocar o senso crítico para funcionar. Ninguém aqui tem oito anos de idade mais. E até essa meninadazinha de sete, oito anos, já tem espírito crítico desenvolvido e com certeza não sai por aí acreditando em qualquer papai noel que vê na tevê ou na esquina. 

Não acredito que a maneira mais sensata e vantajosa de agir seja colocar vendas dos lados dos olhos e decidir não ver o que está aí, mas ver, sim, criticar o que vê, filtrar e usar aquilo que foi filtrado a nosso favor. De maneira que eu vejo, sim, alguns telejornais. Leio Veja quando me cai alguma nas mãos. Leio, leio de tudo. Leio muito. Escolho entre Seara, Friboi, Pif Paf, ora, a escolha é um direito meu, por mais que as propagandas procurem me manipular. E acontece da mesma maneira com a informação. Eu é que escolho se vou aceitar bovinamente tudo o que me é passado através da tela de uma tevê, ou se vou resolver me posicionar de maneira crítica em relação a todos os estímulos que chegam até mim.

Eu, pessoalmente, confio plenamente na minha capacidade crítica, no meu bom senso, na minha capacidade de discernimento e na minha inteligência, de maneira que eu me sinta algo segura para fazer as escolhas que eu preciso fazer a cada minuto. O caminho não é limitar, não é atrofiar, não é mutilar ou afunilar. O caminho, na minha opinião, é ampliar possibilidades e aumentar o campo de visão, aumentando, em consequência, a quantidade daquilo que podemos julgar, analisar e escolher. Ampliando dessa forma a oferta e também o nosso poder de escolha. Então, que venham as notícias tendenciosas e manipuladas. Risos.



sábado, 1 de agosto de 2015

O ovo apunhalado

Do conto "O Ovo Apunhalado", de Caio Fernando Abreu.

"Para ler ao som de Lucy in The Sky With Diamonds, de Lennon e McCartney."


"Uma tarde eu coloquei um cadeira de balanço no pátio da minha casa e fiquei ouvindo essa música. Tinha umas roupas brancas coarando no varal, um sol forte batendo bem na minha cara, eu comecei a suar, mas não tinha importância: eu queria ficar ali, no meio das roupas brancas, sentindo o sol quente bater na minha cabeça, balançando a cadeira e ouvindo aquela música. Quando o sol estava se tornando insuportável _ porque sempre chega um momento em que até o bom se torna insuportável _, quando chegou esse momento eu olhei para a janela deles e vi uma menina me olhando atrás das grades. Quando ela viu que eu olhava, começou a erguer devagar a blusa curta, cheia de listras coloridas, e me mostrou os seios. Entre os seios recém-nascidos, havia um ovo com um punhal cravado no centro de onde escorria um fio de sangue que descia pelo umbigo da menina, escorregava por cima do fecho da calça e pingava devagar bem no meio da clareira de sol onde eu estava.

_ Meu nome é Lúcia _ ela disse, _ Eu estou no céu com os diamantes."

Dedico o trecho deste último conto do livro de Caio Fernando Abreu a todos os ovos apunhalados da minha vida. A tudo o que foi assassinado antes de ter a grata oportunidade de nascer, e respirar. Aos sonhos, planos, amores que não puderam vir à tona. E a todos aqueles que ainda virão. E que o punhal não se faça destino. Que tudo vingue. Que tudo viva. Que tudo seja.


(Postado no facebook no dia 06 de abril de 2015)