segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Você

Você, que cedo entardeceu.
Eu, que tarde amanheci.

.   .   .

"Você"

Intérprete: Elis Regina
Composição: Ray Gilbert / Roberto Menescal

Você, manhã de todo meu
Você, que cedo entardeceu
Você, de quem a vida eu sou
Eu sei, mas eu serei
Você, um beijo bom de sol
Você, que em cada tarde vã
Virá sorrindo de manhã

Você, riso lindo a luz
A paz de céus azuis
Você, sereno bem de amor em mim

Você, tristeza que eu criei
Sonhei você pra mim
Vem mais pra mim
Você

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

A Negação do Negativo

A Negação do Negativo: precisamos ser perfeitos ou precisamos ser saudáveis?

Percebemos hoje, e cada vez mais, uma negação veemente de tudo o que é considerado negativo. Negamos a nós mesmos o direito à tristeza, ao cansaço, ao esgotamento emocional, aos erros de toda e qualquer espécie. E ainda nos punimos por tudo isso. A nós e aos outros. Devemos pensar sempre positivo, mostrar-nos sempre positivos, emanar o tempo inteiro muita energia positiva, se possível com uma aura cor de rosa e chuva de purpurina. Supervalorizamos aqueles que aparentam estar sempre de bem com a vida e, ao mesmo tempo, tendemos a perceber de modo exagerado, e muitas vezes a níveis insanos, tudo o que de negativo percebemos no outro. Por quê? 

Por que esse medo de deixar transparecer falhas, deslizes, fragilidade, dor, se é o conjunto de tudo isso, do positivo e do negativo, o que nos faz humanos e mais fraternos? Nem mesmo uma simples pilha é capaz de funcionar se não possuir as duas polaridades. Mas o que realmente nos salta aos olhos, a ponto de obscurecer o que há de bom, são as falhas, as fraquezas, os deslizes. Nas pessoas, em situações de nossa vida, no mundo, enfim. O negativo tende a se sobressair, e mesmo a sobrepor o todo em muitas situações. Por que essa nossa maneira autômata de ver as coisas dessa forma? De onde vem isso? 

Ah, o medo de falhar... de mostrar-se frágil, imperfeito, humano. Aquele medo infantil de apanhar dos pais se fizermos algo errado. O medo da punição e da dor. Essa mesma dor que é tão necessária ao nosso crescimento, ao nosso desenvolvimento e à maneira à qual desejamos nos moldar. O medo da punição divina e eterna. O medo do não-pertencimento. Esse não-pertencimento que, vejam só, precisa de fato existir para que haja, em contraponto, o pertencimento e a sensação, ilusória, de segurança. Embora a segurança não seja uma das características de nosso mundo. De nossa vida, como um todo. 

Precisamos errar e sentir dor para que o acerto, o bem e o prazer se façam, assim como só percebemos e concebemos a existência da luz se houver escuridão. Seria então correta e saudável a ausência da fragilidade? A ausência da dor, do erro, do sofrimento? Isso sem dúvida é desejável. Mas: saudável? 

Foi nisso tudo que eu me peguei pensando nesta manhã, quando, tendo estabelecido para mim mesma a meta de me levantar mais cedo e bem disposta, emanando positividade por todos os poros, preparava-me para me sentar de maneira confortável, ler em voz baixa o meu mantra pessoal e meditar um pouco. Mas o que veio não foi positividade. Foi uma pontada de tristeza e de cansaço. Cansaço de mim. De todo o peso que tenho carregado até aqui. Cansaço do mundo. Dos problemas do mundo. Das dores do mundo. E dor por todo o sofrimento humano. 

As lágrimas escorreram sem pedir licença. Transbordaram. Imperaram. Mas no momento em que eu começava a reprovar esse sentimento em mim, procurando dizer a mim mesma que a melhor alternativa seria estancar aquele choro, eu parei. E me permiti. Eu dei a mim mesma a permissão de sentir o que estava sentindo, de me entregar por inteiro àquele sentimento e de deixar meu peito e minha alma drenarem tudo aquilo que me fazia mal naquele momento. Eu me permiti. Eu disse a mim mesma: tudo bem, pode chorar. Essa dor vai passar. Tudo isso vai passar. Chore. Chore por quanto tempo precisar. Vai ficar tudo bem. 

Ora, logo eu, que defendo tanto o direito das pessoas a sentirem tristeza (aquela que não configura um sintoma de depressão), a viverem essa tristeza até que ela se esgote, a viverem a dor do luto, as próprias dores, as dores de todos os seus, as dores do mundo, logo eu nào vou permitir em mim esse sentimento? Eu que aconselho pessoas a deixarem que o amigo ou o parente viva sua dor pelo tempo que for necessário e dela se esgote, colocando para fora o que, dentro, preso, certamente fará mal de alguma maneira, física inclusive? 

Permitam-se, como eu me permiti hoje. Plastificar a dor, esconder a dor, engolir o choro só nos envenena. Vivam plenamente tanto os bons quanto os maus momentos. Mergulhem neles, arrisquem-se, conheçam-se! Deixem doer! Errem! Errem muito! Errem feio, errem rude! Coragem! Sejamos inteiros. Plenos. Honestos com nós mesmos. E portanto, mais fortes. Vai passar. É a maior certeza que temos nessa vida: tudo passa. Vai passar. E coisas boas certamente virão outra vez.

Chorem. Acabem-se de chorar. E quando o peito estiver mais leve, a alma mais leve, sente-se então e entregue-se ao seu momento de meditação. Ou vá ver algo interessante na internet, ou saia para a rua e ande só por andar e pelo prazer de estar vivo e respirar. Ou vá ler um livro. Praticar um esporte. Dançar. Fazer aquela receita deliciosa de bolo. Cuidar do jardim. Passear com o cachorro. Encontrar um amigo e passar um tempo com ele. A vida é maravilhosa, é incrível, é intrigante, é instigante, apaixonante demais para ser vivida pela metade. Tenho uma amiga imensamente querida que sempre diz uma coisa muito bonita, desde que nos conhecemos: "a vida é curta demais para ser pequena". Que a gente nunca se esqueça disso.

Existe um ensinamento zen budista que compara o conhecimento a uma xícara de chá: é preciso esvaziar a xícara, jogar fora o chá que já não serve mais para beber, para que possamos então derramar mais chá fresco sobre a xícara. Eu comparo esse ensinamento com as emoções que sentimos. Como procurar encher de uma alegria forçada um coração ferido e cheio de dor? Uma alma repleta de sentimentos negativos?

Esvazie-se de tudo. Deixe tudo ir embora. Não precisa aceitar o convite daquele amigo que jura que você vai ficar instantaneamente feliz se for com ele pra balada. Respeite seu tempo, seu corpo, seus sentimentos. E procure esvaziar-se de tudo o que está machucando e envenenando você. Jogue tudo isso fora, chore, berre, grite, esperneie, soque a almofada, quebre algo (que seja seu!). E quando se sentir melhor, daqui a duas horas, dois dias, duas semanas, você estará pronto para preencher o espaço que ficou com boas e novas coisas. 

Não, você não precisa ser positivo e transbordar felicidade e contentamento vinte e quatro horas por dia. Você tem permissão para sofrer, para errar, para sentir medo, para falhar, para sentir toda a dor que estiver aí dentro. É você quem se dá essa permissão, e ninguém tem o direito de passar por cima de você, das suas decisões, dos seu valores, de tudo o que você é. Permita-se ser pleno. E seja grato por tudo o que lhe vier. Não se iluda: você vai perder muita coisa no caminho. Inclusive pessoas que lhe são tão caras. Mas lembre-se da xícara de chá. E agradeça por poder preenchê-la novamente com novos ensinamentos e tudo de bom que certamente chegará para você. 

"Tudo vale a pena se a alma não é pequena."