terça-feira, 24 de novembro de 2015

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

"We are also what we have lost"

"All the people that I've lost—and I've lost a lot—I keep them with me. And it makes life that much happier. About six or seven years ago, I saw the perfect shirt for Fred, my late husband. I started paying for it before I even realized what I was doing. And then I bought it anyway. I just keep them all with me because life doesn't have to be so lonely. You know, if you shut everybody out just because they die, then what's it all for?"

__ Patti Smith: What I’ve Learned

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

“Mas as coisas estão tão esquisitas hoje em dia, que a gente anda ressabiado de dizer que gosta das pessoas. Então a gente inventa coisas, entende? A gente inventa que é tímido, e que não encontra jeito de dizer. A gente inventa que está ocupado e que um dia vai, sei lá, vai ter tempo de sentar e conversar. Aí, de repente você se toca que não tem mais nada pra ser feito. É tarde. Quer dizer, eu não acho que seja tarde porque as coisas não se acabam aqui. (...) Mas de qualquer forma é muito triste, as pessoas só saberem que a gente gosta delas depois que elas se foram.”

Pra que a semana nos seja mais leve, depois de tanta dor e tanta tragédia. Pra que a esperança nunca nos falte. Pra que a gente possa amar sempre, e cada vez mais. Pra que a gente um dia aprenda a fazer um mundo mais bonito, e mais humano. Pra que a gente não descubra tarde demais que o Paraíso tão esperado é responsabilidade nossa, e que a gente deve fazê-lo aqui. Agora. Pra que a gente ainda tenha tempo de olhar pro outro. E aprender a dizer que ama. 


domingo, 15 de novembro de 2015

"A shooting star only lasts a second, but... aren't you glad to at least have seen it?"
(The Disappearance of Eleanor Rigby: Them, Ned Benson, 2014)

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Ataque e retaliação não são meios inteligentes de "diálogo"

Tinha me decidido a ficar afastada da internet por uns três dias, cuidando de questões pessoais, mas depois das notícias que correram hoje, não consegui e não consigo ficar em silêncio. Desde o sábado está rolando algo que de minha parte reprovo completamente, e que segundo fontes que não sei se são confiáveis, partiu da página Dilma Bolada. Houve um boicote que acabou por retirar do ar páginas de conteúdo machista, entre outros, como a Orgulho de Ser Hétero. Acontece que intolerância gera mais intolerância, e todo ataque traz implícito algum tipo de retaliação. O que acontece é que estão trabalhando para retirar do ar, em massa, páginas alinhadas com a ideologia da página que deu início a essa confusão toda. Em especial páginas declaradamente feministas. Devo fazer cara de quem está surpresa com o resultado? Nessa "brincadeira" já foi a Jout Jout, as páginas Feminismo Sem Demagogia, Moça, Você é Machista e várias outras seguindo essa linha. E agora à noite acessei o Twitter e descobri que estão tentando fazer o mesmo com o blog da Lola Aronovich, o Escreva, Lola, Escreva, que acompanho desde o seu início. Lola diz, em seu blog, estar sendo ameaçada de morte, estupro e desmembramento, além de tudo. É óbvio que o meu lugar é do lado das feministas, tenho ideias absolutamente feministas desde que me conheço por gente. Apesar de reprovar certos radicalismos do movimento, como por exemplo procurar banir livros e filmes que sugiram a mais leve possibilidade de misoginia, sem levar em conta a época e o contexto social das obras em questão. Mas o que penso disso tudo é que parece que as guerras da pré-história e da Idade Média foram transportadas pro ambiente da internet. Se é pra regredir o cérebro e o comportamento, por que não adotam os tacapes como armas logo de uma vez, e voltam a usar gravetos secos pra fazer fogo? Ora, será que alguém neste mundo está pensando A SÉRIO que é assim que as coisas irão ser resolvidas? Como se estivéssemos num jardim de infância, como se jamais houvéssemos atingido a idade adulta, ou sido tocados por qualquer espécie de razão? Precisamos de um amplo espaço de discussão, em que todos estejam dispostos a falar suas verdades, suas opiniões, e a ouvir a opinião dos outros. É assim que a democracia funciona, mas parece que nossa sociedade se esqueceu disso. A internet é um excelente meio para se criar esse espaço de discussão, talvez o melhor dos veículos, um dos mais abrangentes. Mas ainda não aprendemos a utilizá-la a nosso favor, a retirar dela tudo de positivo que ela nos oferece. ATAQUE E RETALIAÇÃO NÃO SÃO MEIOS INTELIGENTES DE "DIÁLOGO", E NADA TRAZEM DE BOM. E só geram mais e mais retaliação. É preciso aprender a dialogar, e especialmente a respeitar a ideologia de cada um. Se um homem curte a página Orgulho de ser Hétero, o que é que eu posso fazer além de procurar dissuadi-lo e apresentar a ele ideias que considero mais adequadas, vantajosas e inteligentes? E se ele não concordar com essas ideias? Aí é deixá-lo pra lá com toda a ideologia equivocada dele. Porque quem vai estar perdendo é ninguém menos do que ele próprio. Cada um com sua cabeça. Cada qual com sua sentença. Já diziam nossos avós. Sim, nós feministas devemos procurar mostrar à sociedade uma maneira mais justa, vantajosa para ambos os lados, e mais inteligente de se viver nesta sociedade. Mas que seja de uma forma clara e, tanto quanto possível, pacífica. Ataques e retaliações só irão atrair mais ataques e retaliações. Agora que a merda já foi feita, agora que o diálogo já foi vergonhosamente deixado de lado, o que nos resta a fazer é resistir e entrar de vez, e de peito aberto, nesta guerra que já estourou de qualquer forma, e não é de hoje. E levantar nossa bandeira o mais alto possível. Deixo aqui todo o meu apoio à Jout Jout e à Lola Aronovich, e a todas as páginas feministas que estão aí, firmes, resistindo lindamente. E espero que em algum momento, ainda que em uma outra era, venhamos a aprender a resolver as coisas através do diálogo, e que o bom senso e a razão venham, enfim, a imperar.


E no entanto, é uma linha reta que sempre, e ingenuamente, esperamos.

Os diários da infância e adolescência, queimei todos, fiz apenas questão de guardar algumas páginas ou rasgar e guardar os pensamentos que eu considerava mais interessantes. Era muita coisa. Era tão pouco espaço. Mas hoje peguei alguns cadernos e fichários em que costumava escrever depois dos meus vinte anos, inclusive durante os meus períodos de depressão e completa apatia e confusão mental, e encontrei alguns pensamentos interessantes. Algumas coisas só faziam sentido para mim naquele estado de apatia e depressão em que me encontrava. Como se alguém houvesse apagado uma luz aqui dentro da minha mente, e eu mal conseguia formular pensamentos muito coerentes. E olha que eu sempre, sempre escrevi muito, desde os meus seis anos de idade. Contos, poemas, romances, crônicas e pensamentos meus. Mantinha cadernos e mais cadernos cheios deles, porque sempre preferi escrever do meu próprio punho _ a caligrafia, um de meus maiores prazeres, a escrever em qualquer tipo de máquina ou computador. E hoje o texto que peguei para ler fala de tristeza, apatia, imensa frustração e solidão. Pela data, eu tinha vinte e cinco anos, e atravessava claramente uma depressão. Grande parte do que escrevi então me parece um pouco confuso, mas tenho certeza de que para mim, naquele momento, fazia todo o sentido do mundo. Mas algo que grifei achei, agora e então, realmente interessante:

Mas a História sempre foi desenhada desta forma: uma sequência perfeitamente alternada de curvas positivas e negativas. E nunca uma linha reta. E no entanto, é uma linha reta que sempre, e ingenuamente, esperamos.

Se mesmo os períodos históricos sempre se alternaram em períodos de descrença e depressão, e períodos de renascimento, esperança, vitalidade e renovação de valores, crenças, conceitos e comportamento social, como esperar então uma felicidade linear qualquer? Como não esperar sobressaltos e grandes decepções? Essas ondas que se alternam entre o positivo e o negativo me parecem nada além de um movimento natural universal. E o saber popular, no fim das contas, me parece extremamente acertado: a hora mais escura é sempre aquela que precede o nascer de um novo dia. Esperança. Esperança sempre. A única certeza que realmente podemos dizer que possuímos é a de que nada ou ninguém permanece no mesmo lugar por muito tempo. Seja por vontade própria. Seja por algum motivo alheio à sua vontade.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Loucura, feminismo e formas de poder

“Não há civilização sem loucura
[…] ela acompanha a humanidade
por todo lugar que haja imposição de limites”.
– Michel Foucault

Excelente texto e análise de Daniela Lima sobre o conceito de loucura relacionado a formas de poder, e sobre a vida e a arte da escultora Camille Claudel, amante de Rodin e irmã do poeta Paul Claudel. Camille passou os últimos 29 anos de sua vida internada como esquizofrênica numa clínica, afastada de sua arte e de suas paixões. Tive o prazer de ver o filme sobre sua vida, há vários anos, e de visitar há algum tempo atrás uma exposição preciosíssima com algumas obras do mestre Rodin, com muitos de seus trabalhos fortemente influenciados por Camille, ou mesmo criados em conjunto com ela, que jamais assumiu a coautoria de tais trabalhos. Daniela Lima nos traz reflexões extremamente lúcidas e pertinentes sobre a loucura tratada como uma ameaça às formas de poder, e sobre estas mesmas formas de poder sendo utilizadas para manter as mulheres sob um forte controle. Questão ainda muito atual, especialmente num tempo em que nunca se falou tanto sobre o feminismo. Gostaria de poder destacar várias passagens do texto de Daniela, mas vou citar só algumas:

"Loucura não é tudo aquilo que age contra a natureza. É tudo aquilo que desnaturaliza formas de poder."
"Essa demarcação das fronteiras da normalidade é usada para limitar quais são as experiências possíveis para mulheres. A questão da normalidade (ou de como ela se transforma em mecanismo do poder) não é puramente teórica: é parte da nossa experiência. (...) Quando Camille transgrediu os estereótipos de gênero de sua época, revelou mecanismos de poder que fabricam esses estereótipos. Era um exemplo perigoso para outras mulheres. Portanto, tentaram “corrigir” violentamente sua anormalidade. O que define o anormal é que ele constitui, em sua existência mesma, a transgressão de leis invisíveis da sociedade, leis que são naturalizadas. (...) O anormal desafia aquilo que é demarcado como impossível e proibido. se a normalidade é um mecanismo do poder, o enclausuramento, a vigilância, o sistema recompensa/punição, e a hierarquia piramidal são algumas formas de normalização. Reduzir a humanidade de alguém para que ela caiba num determinado estereótipo de normalidade é, por fim, uma forma de governo."
"A loucura é um saber, algumas vezes fechado, inacessível, inquietante. Um saber que desafia o poder. Loucos são cada vez mais aqueles que ameaçam a conservação do poder."

Alguma coisa entre a tristeza e a esperança.
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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

"Quem sabe a vida é não sonhar."

As Plêiades

Muito grata por saber, através da série Cosmos, um pouco mais sobre a mitologia que envolve as Plêiades, minha formação estelar favorita desde pequena. Sempre gostei muito, a exemplo de minha mãe e de um tio que é astrônomo amador, de olhar o céu, as estrelas e os fenômenos celestes. E, por alguma razão, sempre fui atraída por formações discretas e menores, daquelas que é preciso prestar bastante atenção para perceber. Como o Messier 7, ou Aglomerado de Ptolomeu, que é só uma manchinha pálida bem perto do final da cauda da constelação de Escorpião. Como as Plêiades, as sete estrelas irmãs, que, segundo nos conta Neil deGrasse na série Cosmos, foram usadas por milhares de anos como uma espécie de teste de visão para identificar aqueles que viriam a ser bons guerreiros. Descobri as Plêiades lá pelos meus onze ou doze anos de idade, e me apaixonei. Achei-as lindas. O meu pedacinho preferido do céu. Quase um segredo. E meu refúgio para as noites em que me sentia triste ou queria ficar sozinha. Era para lá que eu fugia sempre que precisava. Mais tarde vim a saber, pela internet, o nome de cada uma das sete estrelas mais brilhantes, e um pouco sobre a história delas. Descobri que uma delas se chama Maia, por coincidência o nome que adotei na net, e que veio também a ser o meu nome artístico. Mas Maya com um "y", por causa do livro de Jostein Gaarder sobre uma bailarina flamenca que amava arte, astronomia e filosofia. Haveria no mundo um outro nick que me coubesse melhor? Risos. E toda a minha história com o número sete...

Por enquanto a história vai em inglês mesmo, de acordo com a legenda que eu acompanho. Mas ainda volto aqui e faço uma tradução. And it goes like this:


"But there was one particularly gorgeous group of stars, known to the Ancient Greeks and to us today as the Pleiades, a star cluster formed about 100 million years ago. Each of them is some 40 times brighter than our Sun. And Alcyone, the most luminous, outshines our Sun 1,000 times. For ages the Pleiades have been used as an eye test for people all over the world. If you could see at least six of them, you were considered normal. If you saw more then seven, you were an ideal candidate for a warrior or scout. Among the Ancient Celts and Druids of the British Isles, the Pleiades were believed to have a haunting significance. On the night of the year that they reach the highest point in the sky at midnight, the spirits of the dead were thought to wander the Earth. This is believed to be the origin of the holiday once known as Samhain, now called Halloween. All over the Earth, our ancestors told wonderful stories to explain how the Pleiades came to be in the sky. For the Kiowa people of North America, it happened something like this. Long, long ago, some young women snuck away from their campsite to dance freely beneath the stars. Some bears appeared and they ran to the top of a small rock, screaming “rock, take pity on us!” The rock heard their cries and grew taller. Until it became what is today known as the Devil’s Tower. The maidens were transformed into the stars of the Pleiades, which may be seen hanging above the tower in midwinter. The Ancient Greeks also saw those seven jewels as seven maidens, the seven daughters of Atlas, pursued not by bears, but by Orion the hunter, who spied them when he was out walking one day. Orion became mad with desire. For seven years, he chased them relentelessly. Exhausted, they prayed to Zeus for deliverance. Zeus, the king of the gods, felt sorry for them, and transformed those seven maidens into the Pleiades. But the gods are, if anything, capricious. When Orion was killed by the sting of a scorpion, Zeus placed him in the sky where he could resume his pursuit of the seven gorgeous sisters."

domingo, 1 de novembro de 2015

Lendo e ouvindo por aí

"Para renovarmo-nos, é preciso o caos."
Alisson, amigo

"Nada disso importa. Ser parecido ou diferente. Importa é querer lidar com o outro."

Dijavan, amigo

"Penso aqui com minha imensa pequenez que se o amor traz algum tipo de dano ou sofrimento pra você ou pro outro ele tá desequilibrado. O amor não pode destruir nem você nem o outro."
Dijavan, amigo

"Eleve suas palavras, não a sua voz. É a chuva que faz crescer as flores, não o trovão"
Rumi (via Dijavan, amigo)

"Objects concretize our longing for permanence."
Brain Pickings

"The farther we see, the older the light."

Cosmos, Neil deGrasse Tyson

"Our sense of the stability of the Earth is an illusion due to the shortness of our lives."

Cosmos, Neil deGrasse Tyson

"The dinosaurs never saw that asteroid coming. What's our excuse?"

Cosmos, Neil deGrasse Tyson

"It's ok not to know all the answers. It's better to admit our ignorance than to believe answers that might be wrong. Pretending to know everything closes the door to finding out what's really there."

Cosmos, Neil deGrasse Tyson

"Olhem de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveram as suas vidas. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas confiantes, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada professor de ética, cada político corrupto, cada "superestrela", cada "líder supremo", cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali - em um grão de pó suspenso num raio de sol.
A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios.
As nossas posturas, a nossa suposta autoimportância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios.
A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que abriga vida. Não há outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa emigrar. Visitar, sim. Assentar-se, ainda não. Gostemos ou não, a Terra é onde temos de ficar por enquanto.
Já foi dito que astronomia é uma experiência de humildade e criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção humana do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, destaca a nossa responsabilidade de sermos mais amáveis uns com os outros, e para preservarmos e protegermos o "pálido ponto azul", o único lar que conhecemos até hoje."
Carl Sagan
Pentatonix sempre acertando demais no repertório. Ficou lindo demais esse cover do Fleet Foxes a cappella.
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sábado, 31 de outubro de 2015

"E aí a gente vê que a gente não é nada nessa vida, né?"

"E aí a gente vê que a gente não é nada nessa vida, né?"
"Não somos mais do que um grão de areia neste universo."
"Nosso planeta é um pontinho insignificante dentro de todo o esquema do universo."

Olha, eu não sei você, mas eu e todos os outros seres vivos de que tenho e já tive notícias temos nossa importância imensa e fundamental em toda a história da evolução do universo. Se eu não sou nada, e se você não é nada, isso implica, de acordo com a sua filosofia de vida e com uma progressão matemática absolutamente lógica e facilmente compreensível, que o nosso pequeno grupo de amigos não é nada, que nossa família não é nada, que nosso grupo social é absolutamente nada, que cada nação não tem importância alguma, que, por conseguinte, nosso planeta não é nada e que, em escalas cada vez maiores, somos nada enquanto espécie, enquanto sistema, enquanto galáxia, enquanto universo, enfim. Se um mísero vírus que seja não tem a sua vital importância dentro de todo esse equilíbrio extremamente delicado que ajudamos a sustentar, que importância haveríamos de ter como sociedade, e como parte de toda a estrutura que sustenta esse nosso universo conhecido? Isso eu já compreendia aos meus quinze ou dezesseis anos, quando mantinha diários e mais diários que infelizmente acabei surtando e queimando. O que é o macro sem o micro? Vamos parar de repetir frases feitas e absolutamente impensadas. Vamos colocar a cabeça para funcionar.

Signs

"We hunger for significance,
for signs that our personal existence
is of special meaning to the universe."
Cosmos, Neil deGrasse Tyson

"The rest is silence"

Please forgive me for I am such a small child in this astoundingly vast world.
Please forgive me for I have never known the perfect moves, the perfect words, the perfect signs, so you may wish to stay.
Please forgive me for I was such a bad player. I wish we could have both won that game.
"Words can only do harm", I heard you sing not long ago. I guess you were right after all.
Please forgive me for I am just a scared child, and I could never really guess what to do after you said "I see you baby"... I see you baby... and always will... I'm deeply sorry for I was never good enough.
Please, be happy... Hope to find you in a next life...

"The rest is silence"
Hamlet
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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Outro recado sério

A você que pensa que sabe qual é o tamanho da dor do outro, dos problemas do outro, e acredita que é capaz de resolver as suas próprias dores e os seus próprios problemas, que por um acaso são muito maiores do que os dos outros, de maneira muito mais forte e competente do que os outros resolvem as questões deles:

O que eu preciso é de um pouco de apoio moral, se possível, mas sobretudo de RESPEITO. Respeitem as minhas dificuldades, respeitem o meu momento. Isso é o mínimo que um ser humano pode fazer por outro. Não venha me falar sobre os seus próprios problemas e insinuar, ou mesmo expressar claramente, que você é mais forte do que eu e tem lidado com todas as suas adversidades de maneira muito mais adequada e competente do que eu tenho lidado com as minhas próprias. Você pouco me conhece. O que você sabe de toda a minha luta é quase nada. Você não está na minha pele, e não tem a menor ideia das coisas pelas quais eu tenho passado. E essa sua atitude é, para mim, perfeitamente arrogante, desnecessária e nada empática. Apesar de toda a minha imensa luta, e na verdade graças a ela, tenho me transformado, ano a ano, em uma das pessoas mais fortes que eu conheço. Sou, sim, imensamente forte. Tenho todo um conjunto de valores e de crenças, não necessariamente religiosas, bastante firmes na minha vida, e sou alguém bastante otimista em relação às minhas próprias capacidades, em relação a tudo, enfim. Jamais, repito: jamais dirija-se a mim como se você fosse alguém superior, e que sabe enfrentar as suas crises de maneira muito mais competente. Você está certo: você sabe enfrentar as SUAS crises de maneira competente, e forte. Mas você nada sabe das minhas, e de toda a minha luta, e de toda a minha história, que é tão forte e tão bonita. Jamais tente minimizar tudo aquilo que sou. Cada um sabe de si, apenas. Cada um sabe das suas dificuldades, forças e fraquezas, apenas. Mas nada, ou quase nada sabe em relação às do outro. Somos apenas pessoas diversas, de personalidades diversas, passando por problemas diversos, e seguindo, cada qual, o seu caminho. Duvido muito que exista aqui, entre nós, alguma espécie de coitadinho. Se chegamos todos até aqui, é porque somos, todos e sem exceção, extremamente fortes. Portanto vamos nos respeitar. Respeitar os momentos de dor uns dos outros. Ninguém, ninguém aqui é mais forte e mais competente do que o outro. Seja humilde, por favor. E sigamos, porque amanhã o dia também não vai ser fácil. Eu e você sabemos disso. E eu tenho certeza de que tudo irá ficar mais suportável, mais humano, mais bonito, com uma boa dose de respeito de todas as partes. Tudo isto dito, tenham um ótimo dia, na medida do que for possível. E ainda que o dia seja péssimo, é mais um degrau que estamos subindo, é mais um pouquinho que estamos ficando fortes, e sábios. Estamos avançando. E é isso o que importa. É isso que vale a pena.

Vigília

De quando a história do outro toca tanto a nossa própria história, que chega mesmo a fazer mais sentido do que aquela que nossa mão estava prestes a escrever.

Este texto é da Lara Spagnol, e foi escrito em 16 de março de 2015, no Põe na Língua. Recomendo a leitura do blog, e de cada um dos textos fortes, criativos, cheios de talento e personalidade da Lara.



Vigília

Vamos conversar na minha noite de insônia, como se a gente ainda se falasse. Tá tudo bem, eu não tô triste, eu só quero saber o que você anda ouvindo, o que você acabou de ouvir? Você vai pesquisar em algum lugar da sua memória uma música que diga algo que caiba entre a sutileza de um recado e de um descaso. Eu gosto dessa banda, mas essa música eu nunca ouvi, vou te dizer. A música provavelmente será qualquer coisa, mas antes mesmo de dar o play vou procurar a letra no google, e inventar prá ela um segredo que mora entre um recado e um descaso.

Você na verdade nunca prestou atenção no que é que eles cantavam, mas gosta da distorção que rola na guitarra antes do refrão, você achou que eu pudesse gostar também, talvez eu dançasse um pouco sozinha no meu quarto, se não estivesse deitada na mesma posição há quatro horas esperando entrar a primeira fresta de luz pela cortina prá que, aos poucos, meu coração recobre seu ritmo, minha cabeça desacelere e eu consiga dormir.

Ontem a gente comprou umas garrafas e foi prá uma festa estranha, no fim da noite eu me deitei no chão e você se deitou também, a gente ficou tonto o suficiente prá esvaziar a cabeça e passar alguns minutos que pareceram horas observando um ponto na parede enquanto uma música parecida com essa flutuava em volta da gente. Acho que semana passada gastamos o dinheiro que não tínhamos numa festa horrível mas no set do dj tinha uma música e o timbre do vocalista soava idêntico à voz da mulher que tá cantando agora, eu tirei meus sapatos e dancei bastante, derrubei a minha gin-tônica na sua blusa, você sorriu de olhos fechados, as luzes verdes cortavam sua camisa branca na vertical ou na horizontal. Depois a gente desceu as escadas e topou com a brisa de quando o dia tá amanhecendo e o céu ainda tá branco, quase se confundindo com o cinza do alto dos prédios, o último segundo da fresca da madrugada. A gente andou até uma praça e deitou num quadrado de grama, eu pus a cabeça no seu ombro e pensei que tudo bem dormir ali, se só por alguns segundos.


Acordei alguns anos depois.



Se eu dormir, amanhã vou acordar cantarolando o refrão da música que ouvi na insônia passada. Parece que foi ontem, eu sinto as costas molhadas e coçando da mistura de orvalho e grama, eu acho que foi ontem, a minha cabeça dói um pouco, eu não sei se é culpa do gin-tônica dos anos passados ou se é só a luz forte do computador dentro dum quarto escuro, meus pés também estão cansados, houve dias em que eu dancei, mas eu não sei mais se em sonho ou em bebedeira, é que a insônia você sabe como é, é como se você estivesse sempre consciente de que está dormindo, quando na verdade está acordado, não existe um limite visível entre o sonho e a vigília, porque talvez seja apenas a eterna vigília que aos poucos dá seus sinais de delírio, é que com ela é assim, com a privação do sono.



Dormi e sonhei que dormia.
Acordei brega hoje.
"Ay, Ricardito...", diria a Menina Má.
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terça-feira, 27 de outubro de 2015

Utopia, essa coisa tão querida

Penso que todo e qualquer cidadão deveria passar, anualmente, por uma espécie de ENEM, e ser avaliado em questões morais, éticas e psicológicas para saber se tem condições ou não de integrar a sociedade. Caso reprovado, deveria então frequentar instituições que lhe ensinassem, ou recordassem a ele, o que significa ser humano, em todas as suas competências. Penso algo ligeiramente semelhante e mais complexo em relação a criminosos e presídios. Algo que incluísse severo acompanhamento psicológico e psiquiátrico, muito trabalho físico e uma completa reforma mental, também no campo moral, ético e psicológico, em instituições apropriadas. Mas existe algum interesse dos grandes nesse sentido? Ah, a utopia, essa coisa tão querida.

domingo, 25 de outubro de 2015

Prisões e metamorfoses ambulantes

Escrevi outro dia, de maneira não tão original, vim a saber, e movida por motivos bem pessoais, confesso, sobre a necessidade que a maior parte das pessoas tem de se encaixar em moldes sociais predeterminados. Mas existe uma outra parcela que tem um medo extremo de pensar, e especialmente de demonstrar que pensa, qualquer coisa igual ou parecida ao que a maioria das pessoas pensa. Vejo muito acontecer em redes sociais, em postagens que procuram fugir a todo custo dos moldes tradicionais, em opiniões expressas em postagens de conteúdo popular, e até em conversas com amigos. Isso, também, aprisiona.

A “manada” pode ser tão alienante quanto o desejo de escapar totalmente a ela. Pode-se estar cego, ou vir a fazer-se cego, ainda que de maneira não intencional, tanto seguindo a corrente quanto nadando em direção às margens. O medo que aqueles que fazem parte da corrente têm de não pertencer é tão medo quanto o medo de pertencer demais, e de não se destacar. É medo. E todo medo aprisiona. Todo medo nos torna cegos.

A mim parece que a opção mais saudável e interessante, aquela que vai nos permitir aproveitar tanto os benefícios da corrente quanto os dos extremos, e nos colocar em uma posição realmente privilegiada de observação e de análise tanto de um quanto de outro, é encontrar um meio termo e desenvolver uma certa permeabilidade entre os extremos e tudo aquilo que hoje é considerado mainstream. É parar de ter medo do que é massivo. E é parar de ter medo dos extremos. Em todos os aspectos da nossa vida. É fazer-se livre. Tão livre quanto ainda se pode ser neste nosso mundo.

Eu já acho que tenho uma permeabilidade excessiva e que também não é ideal e nem muito saudável, mas esse é o meu ponto de partida pessoal, o meu caminho. Cada um tem o seu ponto de partida. E de fato eu não sei. Não sei tudo o que deveria saber, ou o que os outros acreditam que eu deveria saber. E isso é ótimo, perceber que não cheguei a um tipo qualquer de posição lamentavelmente estagnada e cheia de certezas, e que eu posso, com alívio, seguir em movimento, e em aprendizado constante. Porque não há nada nesta vida que me dê tanto prazer: estar em movimento constante, físico e mental, e aprender e evoluir sempre. Sempre.

Por conta dessa permeabilidade, e de um perfil extremamente auto-analítico, com grande frequência vejo-me defendendo apaixonadamente alguns pontos de vista que acabo vindo a reconsiderar no dia seguinte, de cabeça mais fria. Como foi o caso de muitos pontos defendidos no meu último texto, Parem Este Mundo Perfeito Que eu Quero Descer. É claro que precisa haver uma medida saudável das coisas para que um progresso real e duradouro ocorra, e para que o mundo não seja caracterizado pelo caos. É preciso haver ordem. É preciso haver saúde e equilíbrio. Mas vejo esse texto muito mais como um grito de socorro de uma minoria na qual me incluo. E é desta maneira que ele faz para mim todo o sentido.

Esta instabilidade em certo grau, esta excessiva fluidez e inconstância de pensamento que sempre foram uma marca da minha maneira de ser, apesar da personalidade forte que meus pais perceberam em mim desde muito pequena, sempre me deixou algo perdida e muitas vezes impaciente comigo mesma. Mas, há poucos dias, assistindo a um programa da tevê aberta, afinal a “manada” pode ser uma opção saudável em vários momentos, ouvi uma frase que me fez relaxar em relação a tudo isto. A frase é do poeta francês Paul Claudel. Aquele mesmo, o irmão da Camille. E diz o seguinte: “Reservo-me, com firmeza, o direito de me contradizer". Ora, o que é contradizer-se senão ter a coragem e a disposição de lançar-se demoradamente sobre um mesmo assunto e considerar todas as suas possibilidades, buscando uma maneira mais adequada de lidar com toda a questão?

Essa inconstância, confesso, já me constrangeu bastante na faculdade. Lembro-me das orientações dos professores para os trabalhos que fazíamos, e das opiniões que eu dava aqui e ali. Acontece que um dia calhei de pegar orientações de uma professora com o mesmo perfil auto-analítico, que se dispôs a considerar as próprias opiniões em relação às minhas, e acabou concordando em um ponto meu. Quando ela enfim concordou, eu surgi com uma opinião diversa, porque a minha cabeça já tinha dado outras mil voltas em torno do assunto. Ela acabou se irritando e me perguntando “você está me desautorizando?” E como explicar, no calor do momento, que aquilo era uma característica minha, e não uma posição de afronta proposital em relação à pessoa e às ideias dela? Eu, que sempre tive o lado emocional muito forte também? Corei apropriadamente, me enrolei para pronunciar aquele “não”, e achei por bem ficar mesmo com a ideia anterior, com a qual nós duas havíamos concordado. Hoje vejo que nos estranhamos justamente por sermos tão semelhantes.

Que sejamos capazes, enfim, de identificar as prisões que nos cercam, ou que estão prestes a nos cercar, e de não vendarmos nossos olhos nem à cultura das massas, e nem à cultura que cresce e se desenvolve nas margens. E que tenhamos sempre a coragem de reconsiderar nossos pensamentos e atitudes, procurando uma versão cada vez melhor de nós mesmos.



"Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo"
Raul Seixas

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Mente inquieta, coração inquieto

Tenho me questionado muito sobre as mesmas coisas que questionava aos onze anos, quando me apaixonei pela primeira vez na vida. Seria o amor entre duas pessoas um tipo de amor mais egoísta, e portanto errado, ou menos nobre? Eu me perguntava. E o amor por um filho, então? O que Cristo teria dito sobre os meus questionamentos de criança, católica? O que Cristo e todos os grandes mestres diriam sobre os meus questionamentos de agora, agnóstica? O tempo passou, e hoje tenho ainda menos certezas. A razão vale mais do que um sentimento que me parece tão bonito e tão puro? O amor vale mais? Seriam iguais? Deveriam se equilibrar? E essa vontade imensa que a gente tem de ser tão boa e tão certa? Em que medida vai nela o amor? Em que medida vai nela a razão? O que os grandes mestres de todos os tempos teriam a dizer sobre isso? Cristo? Buda? Krishna? Os mestres sufis? Os grandes mestres budistas? Os monges? Os Papas? Todos os grandes líderes? Por que minhas inquietações de agora são tão semelhantes às minhas inquietações da infância? O que se esconde por trás disso? O que isso quer dizer? Seria essa a questão fundamental? Estou exausta e não consigo descansar a mente, nem o coração. Precisa haver uma resposta. Precisa haver razão.

Precisa haver amor.
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"Questions of science
science and progress
do not speak as loud
as my heart"
“Round are way the birds are singing
 Round are way the sun shines bright
 Round are way the birds are minging
 Round are way it's alright
 Round are way the birds sing for you
 Cos they already know you
 They already know you”

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Blue memories, white spell

Não te quero aprisionado, como em um feitiço, aqui entre as barras do meu peito, da minha mente. Nunca foi assim que te quis. Quero-te livre, como aquele pássaro azul de que eu cuidava com tanto carinho, mas que não cantava nunca, e que um dia eu vi escapar pela porta aberta da gaiola, abrir em par aquelas asas que eu nunca soubera serem tão grandes, e voar contra um céu cheio de nuvens, mas livre, livre, tão livre quanto uma alma pode ser. Quero-te como na visão daquele pássaro livre. A visão mais linda que tive até os meus onze anos de idade. Uma das visões mais lindas, e cheias de significado, de toda a minha vida. Duque, eu o chamava. Rei, sol, anjo foste para mim, e sempre serás. Se algum dia voltares, que seja infinito o teu cantar. Mas não te quero aprisionado. Como em um feitiço. Aqui, entre as barras do meu peito. I do not, I do not weep. I do not want to.
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Go, beautiful bird... I understand you have to go. I understand I have to go. We both know we did what we should have done. We really did. Everything is gonna be alright. You may be that owl made of stone in my dreams. You may be that owl after all.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

"Parta, pegue um avião, reparta
Sonhar só não dá em nada
É uma festa na prisão"
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domingo, 18 de outubro de 2015

Conversa com Virginia

Aquela frase que começa com "Since sentient beings – [humans] and animals" me preocupa de certa maneira, Virginia Woolf... Temos uma certeza tão cega e tão extremamente parcial das coisas todas, que sequer imaginamos uma possibilidade qualquer de que os animais ditos irracionais sejam seres que, lá atrás na história, tenham, por vasta experiência ou por uma espécie de sabedoria congênita, apenas decidido manter as coisas simples, primárias, com todas as suas preocupações de ordem básica, enquanto nós fomos a única espécie que escolheu se debater mentalmente por eras e eras, e desesperar-se em busca de respostas e "soluções" que acabariam nos levando a um colapso futuro, e durante todo esse tempo eles apenas se riam internamente de nós por sermos os verdadeiros bobos da história... "So long, and thanks for all the fish"... 

Mas isso são só palavras ácidas de alguém extremamente decepcionado em vários níveis, em especial no que diz respeito a questões sociais. De fato, todo o seu pensamento é bem interessante:

"Since sentient beings – [humans] and animals, to whom things appear and who as recipients guarantee their reality – are themselves also appearances, meant and able both to see and be seen, hear and be heard, touch and be touched, they are never mere subjects and can never be understood as such; they are no less “objective” than stone and bridge. The worldliness of living things means that there is no subject that is not also an object and appears as such to somebody else, who guarantees its “objective” reality. What we usually call “consciousness,” the fact that I am aware of myself and therefore in a sense can appear to myself, would never suffice to guarantee reality... Seen from the perspective of the world, every creature born into it arrives well equipped to deal with a world in which Being and Appearing coincide; they are fit for worldly existence."

sábado, 17 de outubro de 2015

Parem este mundo perfeito que eu quero descer!

“Are you sure what side of the glass you are on?”
Nine Inch Nails

Hoje me entristeci vendo na tevê uma menina extremamente linda e talentosa, e já devidamente notada, com uma luz linda, olhos e sorriso extremamente apaixonantes, inteligência e expressividade absolutamente encantadoras e fluentes, procurando pertencer e se encaixar adequadamente, sem erros ou riscos, quando entregaram um pincel em sua mão e lhe permitiram rabiscar uma parede. Ela procurou o que havia de mais limitado e quadrado em toda a parede: o quadradinho do interruptor de luz, que por sua vez estava dentro de outro quadrado perfeitamente padronizado, adequadamente encaixado em toda a estrutura daquela parede igualmente padronizada, quadrada, e branca. E coloriu aquele quadradinho. Completa e perfeitamente.

Vivemos neste mundo de aparência insanamente perfeita, buscando sempre mais desta mesma, bem, perfeição. Estampando sempre sorrisos e maquiagens e cabelos perfeitos, com chapinhas perfeitas, em imagens perfeitas, em redes sociais perfeitas, em compartilhamentos perfeitamente curtíveis, por trás dos quais levamos uma vida perfeitamente insatisfeita, e infeliz. Um mundo em que se algo ou alguém nos interessa de maneira extremamente viva, intensa, passional, e nos desperta qualquer espécie de comportamento não padronizado, é porque estamos loucos, e precisamos nos tratar. Um mundo onde temos cada vez mais motivos para nos tratar, cada vez mais remédios disponíveis, cada vez mais transtornos mentais sendo descobertos, e cada vez mais diagnósticos perfeitamente imprecisos. Porque devemos ser razoáveis. E, se possível, rasos. Devemos nos adequar a um padrão cinzento e morno de comportamento. Devemos nos encaixar na sociedade de maneira correta, de preferência em um formato mental que seja pouco ou nada mutável, porque assim fica mais fácil de lidar, de marchar adiante sem maiores questões, sem exaltações, de maneira que não precisemos sequer pensar demais para realizar o que quer que seja. De maneira que governar, manipular e lucrar desonestamente seja tarefa relativamente fácil.

Faz-se notar, de maneira ligeiramente curiosa e sutil, que são justamente as paixões intensas que nos arrancam do lugar, e que nos movem na direção de algum progresso. Toda espécie de criatividade nasce de alguma paixão, de algum tipo de deslize precipitado, de um caminho que alguém tentou traçar de maneira diferente na direção de um desejo intenso por algo, ou por alguém. Somos todos frutos do mais puro tesão. Eu, você, aquelas formiguinhas no seu pedaço de bolo e na sua xícara de café. E o fato é que vivemos, sistematicamente, tentando cercar riscos, traçar rotas seguras, minimizar erros que nos levariam a caminhos diferentes e criativos, encaixotar mentes brilhantes que poderiam vir a mudar alguma coisa de forma positiva, se ao menos as deixassem em paz com suas paixões e obsessões, aquelas que não ferem a ninguém. Se ao menos elas mesmas conseguissem deixar-se em paz. Se não houvesse culpa no tesão. Se não houvesse risco no desejo. Se não houvesse uma condenação implícita em cada pequeno deslize. Em cada tentativa fracassada de sair da segurança e do conforto das rotas conhecidas. Se cada impulso arriscado não fosse chamado de loucura, e se cada um desses loucos perigosos não fosse imediatamente diagnosticado e medicado. Para o seu próprio bem. Para o bem da sociedade. Se cada um desses loucos pudesse ser valorizado por tudo aquilo que realmente os caracteriza. Se a essência daquilo que os caracteriza não fosse composta pela mais pura, e insana, coragem. Se o mundo não precisasse tão desesperadamente dos erros, e dos desajustados e desmedidos, para dizer-se são. E então seguir, às custas deles, progredindo. Se conseguíssemos, enfim, admitir que toda regra inclui necessariamente aquilo a que chamamos erro, e todo progresso, o que chamamos desvio.


“And it’s all right where it belongs.” Está tudo certo. Sigamos encaixotando Dom Quixotes. Estamos exatamente onde deveríamos estar. Da maneira como deveríamos estar. Ajustados. Perfeitamente ajustados. Ou procurando, loucamente, nos ajustar. Pois parem. Parem este mundo perfeito. Porque eu quero descer.

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sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Lord's Prayer

Our Father who art in heaven,
hallowed be thy name.
Thy kingdom come.
Thy will be done
on earth as it is in heaven.
Give us this day our daily bread,
and forgive us our trespasses,
as we forgive those who trespass against us,
and lead us not into temptation,
but deliver us from evil.
For thine is the kingdom,
and the power, and the glory,
for ever and ever.
Amen.
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Please let me forgive myself.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

A queda

Ela vê o céu escurecer devagar e as primeiras estrelas aparecerem, aquele tom de azul que sempre foi o seu favorito. Mas hoje a lua se ri dela. Sabe, só aquela linha fina, aquele sorriso do gato de Alice, de quem sabe de todas as coisas mas não vai dizer nenhuma delas. Mas ela só quer saber...

Quais serão as palavras mais certas? Os passos mais adequados? O movimento mais pertinente? O gesto mais significativo? A bailarina hoje está perdida. Descoordenada. Desorientada. Hoje ela é apenas humana, e está sentada na plateia, à espera. De que as cortinas se abram. De que uma luz qualquer se acenda. Fora, e dentro dela. 

Ela sabe que deveria ter esperado. Esperado o tempo dele. O tempo dos seus passos, da sua respiração, do abrir e fechar dos olhos dele, ela deveria ter esperado, ela deveria. Mas ela preparou o salto cedo demais, e o impulso foi tanto, e a vontade era tanta, que ele não conseguiu segurá-la depois daquela sequência de glissade e grand jeté. Os braços dele ficaram no ar. Ela foi de encontro ao linóleo. O pas de deux estava arruinado.

As vaias do público. As luzes se apagando. As cortinas se fechando atrás dela. Os passos dele atravessando a coxia e desaparecendo, sem ousar olhá-la nos olhos. E aquela dor, que de tão grande por dentro, transbordava e também doía por fora, e sufocava. As lágrimas que ela não conteve. Por dias, e dias.

Decidiu nunca mais voltar a dançar. Os pés sempre machucados, as torções e as dores constantes, e a cada vez que ia ao chão, a dor era maior, e maior. E aquela tinha sido a maior dor de toda a sua vida, a maior das quedas. Decidido. Não voltaria mais a dançar. I won't dance, don't ask me. 'Cause my heart won't let my feet do things that they should do.

Meses se passaram, e ela ia murchando aos poucos, perdendo a beleza, o brilho. A vontade de viver. A saudade dos palcos, daquelas luzes todas. A saudade do público, dos aplausos, das flores ao fim de cada espetáculo. A saudade da maneira como se sentia quando dançava, daquela eletricidade toda percorrendo o seu corpo, a saudade de sentir-se viva, imortal sob as luzes. Infinita. A saudade dele. Acima de tudo, a saudade dele.

Ela deveria ter esperado... deveria ter esperado... antes que a queda acontecesse... antes que ele lhe virasse as costas... que as luzes se apagassem... que as cortinas se fechassem atrás dela... antes que... e agora ela não sabia o que fazer para alcançá-lo outra vez... tinha sido tão impulsiva, e tão burra... ela nem sabia mais se ainda sabia dançar... One day I’m gonna find that light inside of me again... one day I’m gonna find the perfect moves... one day I’m gonna find the perfect words... one day I’m gonna reach you... I’m gonna reach you...

Apoiou-se na beirada da mesa e começou a mover os pés, um depois do outro. Meia ponta, ponta, meia ponta, desce. Meia ponta, ponta... espantou-se consigo mesma quando viu a ponta do pé direito riscar o chão num semicírculo e desenhar um rond de jambe perfeito. Ela não tinha se esquecido! Arriscou então um dos seus movimentos preferidos: do rond de jambe, trouxe o pé lá atrás em um coupé en dehors e arriscou um developpé bem alto. Perfeito! Ela ainda conseguia!

Não teve dúvidas: pegou a mochila, colocou nela as sapatilhas e todo o material das aulas de dança, e deu uma conferida rápida no celular. Ainda tinha tempo. Tinha todo o tempo do mundo. O corpo de baile estaria ensaiando durante toda aquela tarde. Ainda que fora de forma, ainda que tropeçasse nos passos, nas palavras, nos gestos, ainda que tão insegura e com medo de uma nova queda: ela voltaria a dançar. Ela voltaria a vê-lo, e quem sabe mesmo voltaria até a ensaiar com ele alguns passos. Porque era só assim que tudo fazia sentido. Era só assim que valia a pena viver. Apesar de todo risco. Apesar de toda queda.

Passou apressada pela porta, deixando-a bater sem querer, e nem viu quando a caixa de grampos de cabelo caiu no chão. Não tinha mais importância. Dançaria de cabelos soltos. Dançaria descalça. Dançaria vestindo só a alma, e o coração. Dançaria.
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terça-feira, 13 de outubro de 2015

Poema

Ontem não foi um dia bom pra mim... e até pouco tempo atrás eu não estava nada bem... mas então conversei com algumas pessoas incríveis, e de repente essa música linda surgiu na minha cabeça. Essa é tão linda que me arrepia toda. Fiquei feliz porque o meu "radar musical" voltou a funcionar, e me trouxe, com algum atraso, uma música que fala de passado e de infância. Deixo-a aqui, com carinho. E que o dia seja bom, enfim.

Essa vai para ti. Perdão. Por tudo.
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Poema
(Cazuza, na voz do Ney)
  
Eu hoje tive um pesadelo
E levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo
E procurei no escuro
Alguém com o seu carinho
E lembrei de um tempo

Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo

Hoje eu acordei com medo
Mas não chorei, nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito
Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
E que não tem fim

De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás
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domingo, 11 de outubro de 2015

Outubro

     "Nesse momento, os sinos começaram a dobrar a finados. O coronel esquecera-se do enterro. Enquanto a mulher tomava o café, desprendeu a cama da rede por uma das pontas e enrolou-a pela outra, para trás da porta. A mulher pensou no morto.
     _ Nasceu em 1922 _ disse ela. _ Exatamente um mês depois do nosso filho. A sete de Abril.
     Continuou a sorver o café nos intervalos da sua respiração ofegante. Era uma mulher constituída apenas de cartilagens brancas por cima de uma espinha dorsal arqueada e inflexível. As perturbações respiratórias obrigavam-na a perguntar afirmando. Quando terminou o café ainda estava a pensar no morto.
     _ Deve ser horrível estar enterrado em Outubro _ disse. Mas o marido não lhe prestou atenção. Abriu a janela. Outubro já se tinha instalado no pátio."

(Ninguém Escreve ao Coronel, Gabriel García Márquez)

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Já fazem quatro meses que é outubro aqui dentro...

Seja marginal. Seja artista. Seja herói.

Este não é um texto de protesto. É um texto sobre marginalidade. É um texto sobre dor, e solidão. E arte.

Elara vinha de uma família modesta. Cinco irmãos. Um deles adotivo. Seus pais eram dois românticos idealistas, queriam fazer a diferença no mundo. Queriam diminuir a dolorosa fila de espera, nas creches, de tantas crianças por um lar. Queriam fazer a diferença no mundo de uma criança, uma só que fosse. E fizeram. Mas a prática, a dura vida prática, veio lhes mostrar, a todos, que nada haveria de ser tão simples assim. Cinco crianças para vestir e educar. Cinco bocas, e cinco sonhos, para alimentar. Aniversários. Dia das Crianças. Natal. E fizeram o melhor que puderam. Sempre, o melhor. Enquanto puderam, os filhos estudaram nas melhores escolas. Essa era a prioridade da família. Porque era a educação, ah, o idealismo dos pais!, o que iria garantir o futuro dos filhos. Não era o berço. Não era a política. Não era qualquer tipo de influência, ou de desonestidade. Para eles, não era. Eram pais éticos demais. Honestos demais. Bons demais para este mundo.

Elara se encantava com tudo. Com as flores, com os bichos, com as plantas, com os insetos, com as estrelas, com a poesia, com a música, com os livros. Com a arte. Elara tinha essa pressa de viver tão própria das crianças curiosas e cheias de vitalidade. Talvez por ter escapado à morte, aos quatro meses de idade, durante uma séria epidemia de meningite. Quatro meses de idade, e aquela sensação enlouquecedoramente angustiante de solidão já deixava suas marcas profundas nela, já que precisara ser isolada, sob o risco de pegar alguma infecção, e por dias a fio não pudera ver ou ser tocada pelos pais. Ou então por ter sido internada aos cinco anos, por dias e dias, quando, pela primeira vez na vida, lembra-se de ter sentido uma imensa sensação de tristeza e melancolia por estar só. Talvez, por todas essas coisas, quisesse compensar tudo, e até os nove anos de idade ela foi uma das crianças mais cheias de vida e alegria de que já se teve notícias. Aos seis anos, sonhava em ser bailarina clássica, e ficava na pontinha dos pés e movimentava os bracinhos como a mais perfeita Odette, em O Lago dos Cisnes, quando as amiguinhas duvidavam de que ela fazia ballet. Mas ela ainda não fazia ballet. Muitos anos ainda se passariam até que Elara pudesse ser capaz de pagar, ela mesma, por seu grande sonho de ser bailarina.

Filha de pai músico, pianista e maestro, e de mãe desenhista e escritora, Elara, já na barriga da mãe, ouvia música clássica. Era para que a gestação, e a filha, se desenvolvessem calmas. As pessoas, bem mais tarde, diziam, de fato, que Elara era calma. Ela teria gostado, então, de ter se lembrado da razão. Mas nunca se lembrava. E nunca a mencionava. O fato é que Elara percebeu desde cedo que era diferente. Que tinha interesses diferentes. Que suas brincadeiras preferidas eram diferentes das dos outros. Eram brincadeiras solitárias. Desenhava muito. Cantava sozinha. Amava brincar de fazer esculturas, sozinha, com bolas de argila branca que seus pais compravam de quando em quando, porque não eram baratas. Doeu a alma quando um dia disseram que não as poderiam comprar mais. Mas aguentou, firme, e até tentou trabalhar o barro que havia no quintal de sua casa. Mas, quando seco, ele se quebrava todo. Seu lado escultora acabou morrendo ali. Sem assistência. Sem um mecenas qualquer que a salvasse então, ainda que com tão pouca idade.

Aos cinco anos de idade, aprendeu com a mãe, uma guerreira professora do Estado, a ler e a escrever. Ela se lembra de tudo: daquele espaço mágico entre a cama de casal e a janela aberta, das duas sentadas, de pernas cruzadas, do livro no chão, “A Casinha Feliz”. As risadas da mãe, o sorriso da mãe, o som doce e calmo da voz da mãe, o olhar amoroso da mãe. Ela nunca, nunca se esqueceu. Foi ali que ela se apaixonou pela literatura. Foi ali que ela começou a ler todos os livrinhos infantis que existiam na casa, e que também começou a escrever, e nunca mais parou. Aos seis anos, escreveu e ilustrou o seu primeiro livrinho, que foi organizado e passado a limpo com a bonita letra de engenheiro do pai, e com o qual concorreu, aos sete anos de idade, em seu primeiro concurso de literatura infantil. Ganhou uma medalha de primeiro lugar, que guarda com imenso carinho até os dias de hoje. Aprendeu a usar a antiga máquina de escrever dos pais, e não a largou mais. Passava tardes criando histórias e escrevendo freneticamente. Adquiriu o estranho hábito de ler na cama enquanto escutava música. A Baía dos Golfinhos, de Lucília Junqueira de Almeida Prado, foi o primeiro livro que a emocionou e marcou. Foi quando decidiu que queria trabalhar no mar, com os peixes. Queria ser bióloga marinha, mas ainda não sabia muito bem como era isso. A vida acabaria mostrando outros caminhos a Elara. Depois ela se apaixonou pela história que o pai contava aos cinco filhos, todas as noites, um capítulo por noite, com aquela voz bonita e sonora de barítono: A Montanha Encantada, de Maria José Dupré. Depois vieram os livros todos da Coleção Vagalume, e os de Monteiro Lobato. E o primeiro livro mais sério que leu na vida, ainda aos onze anos de idade: Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. Esse ela leria ainda algumas outras vezes. E os desenhos não paravam: Elara criava as suas próprias bonecas, as que não podia ter de verdade, em desenhos no papel, e as recortava, e brincava com elas. Fazia-as do jeito que queria. Do jeito que sonhava. E os desenhos iam ficando melhores, e melhores a cada dia. Até que a pintura também surgiu em sua vida. E também o teatro e o violão. Mas aí já estamos pulando alguns capítulos na história.

O fato é que, por volta dos dez, onze anos de idade, na época da pré-adolescência, “aquilo” começou a acontecer. Elara se sentia deslocada e imensamente sozinha em sua arte, e em sua maneira diferente de ser. Passava as horas na escola perdida nos próprios pensamentos, criando histórias em sua mente, e praticamente não tinha amigos com quem brincar, porque todos evitavam aquela menina tão diferente e tão calada. As coisas começaram a ir muito mal na escola. E muito mal em casa também. Porque quando os irmãos todos chegavam com as notas da escola, todas notas máximas, Elara chegava com notas médias. Ela não pertencia àquele lugar. Ela parecia não pertencer a lugar algum. Elara já era marginal. Desgraçadamente marginal. E ela se perdia e se refugiava cada vez mais em sua arte. Em seu mundo interno. Os pais comparavam seu desempenho fraco ao desempenho exemplar dos irmãos, e a criticavam negativamente, o que a fazia sofrer muito, e só a isolava cada vez mais em seu mundo. Cada vez mais inalcançável. Até que um dia, depois de uma briga com o pai, entre os dez e os onze anos, Elara se feriu pela primeira vez. Arranhou as pernas até sangrarem, e as marcas ficaram ali por vários, vários dias. Outros episódios se seguiram, e ela desenvolveu algo de que não gosta de falar de jeito nenhum, porque mexia muito com sua imagem e com sua vaidade, justamente no momento em que descobria seu corpo, sua sexualidade, e sua primeira grande paixão, aquela que ela não viria nunca mais a esquecer. E quando, enfim, soube que era correspondida, era tarde demais: ele estava se mudando para longe, e praticamente nunca mais voltaram a se ver. Os dois tinham apenas doze anos de idade, mal completos. As mancadas do destino. Um desses erros imperdoáveis da existência. Era um novembro chuvoso, e Elara ouviu “Patience”, dos Guns N’ Roses, muitas e muitas e muitas vezes enquanto chorava na cama, ou no banheiro. E Elara não sabia do pior. Ela só viria a saber muito, muito mais tarde: já havia começado a desenvolver, com tão pouca idade, os primeiros sintomas de um Transtorno de Personalidade Borderline.

Ainda assim, tornou-se bailarina aos dezessete. E logo depois, professora de dança. Sempre questionando todas as religiões e sua própria espiritualidade, fazia dos palcos o seu templo, e de sua arte, sua religião. Experimentou o teatro, mas era excessivamente tímida para ele. Expressar-se através dos movimentos do seu corpo lhe era muito mais natural, e de certa forma, seguro. Quando dançava, ela sentia uma eletricidade linda envolver todo o seu corpo, como em uma manifestação divina. Era tomada pela dança, como se por um anjo. E assim foi até que, aos dezoito anos, outros sintomas começaram a surgir. Fobias, crises de pânico, crises de ansiedade que lhe tiravam o ar, disparavam-lhe o coração, doíam-lhe o peito, deixavam-na no mais completo desespero, numa certeza louca de que morreria a qualquer minuto, de um ataque cardíaco, ou de um aneurisma qualquer. E as crises de mania. E as depressões. As depressões arrasadoras, profundas. Sintomas que a atormentariam por toda a vida, e que acabariam por desestruturar todos os seus planos e sonhos, toda a sua vida pessoal, afetiva, acadêmica e profissional. Elara rezava. Rezava para que pudesse um dia ser alguém normal. Ainda que aquela normalidade fosse lhe custar, através do Lítio e de outros estabilizadores de humor, quase toda a sua sensibilidade, e quase toda a sua arte. Era extremamente desesperador. Era enlouquecedor. Elara só queria que alguém a abraçasse, e lhe dissesse que tudo iria ficar bem, e que haveria uma cura, em algum momento, em algum lugar.

Elara foi, como um pássaro de fogo, sua amada Fênix, incontáveis vezes ao inferno, e voltou. Mais forte e mais forte a cada vez. Descobriu forças onde nunca desconfiou que elas existiriam. E a muito custo conseguiu completar alguns períodos da faculdade que havia escolhido, Arquitetura, e ainda escrever alguns textos, alguns contos e alguns projetos de livro, além de um livro completo. Até que a doença de sua mãe retornou, e ela veio a falecer. O que acabou por desestruturar ainda mais a vida de Elara, e todas as suas tentativas de seguir seus planos e sonhos. Muitos anos foram perdidos com tratamentos equivocados, até que Elara encontrou um anjo que conseguiu dar um pouco de estabilidade à sua vida, equilibrar aos poucos a química de seu corpo, e fazê-la voltar a sonhar com uma vida, com um presente, com um futuro. Elara voltou a sonhar. Elara voltou a fazer planos. E se apaixonou outra vez, como nunca antes havia se apaixonado. Voltou a colocar sua vida em movimento, voltou a seguir os trilhos da arte e, principalmente, aqueles da sua própria arte. Ainda que sua grande paixão tenha sido só uma ilusão, a mais linda de todas elas, ainda que continue a levar uma vida na solidão, como sempre levou, e ainda que muitos a vejam apenas como alguém esnobe, que gosta de contar vantagem das coisas que sabe e das coisas que viu nessa sua já longa vida, sem levar em conta que Elara só o faz porque a cultura e a arte são as suas grandes paixões nessa vida, e sem elas Elara não saberia respirar; ainda que seu próprio pai tenha começado a implicar com essa volta recente de toda uma vitalidade e de uma paixão pela vida que haviam sido perdidas, e ainda que ele próprio veja Elara como alguém esnobe, alguém que conta vantagem do que sabe e do que viu (me diz, como é que se pode ser esnobe e contar vantagem de algo que é para nós uma grande paixão?), temendo, quem sabe, um abandono inesperado num momento em que ele se sente tão só, tão envelhecido e tão frustrado; ainda que Elara tenha visto seu mundo desabar de uma só vez neste ano de 2015, ainda que todas essas coisas, que não lhe são leves, estejam em seu caminho, Elara resiste. Elara é uma artista. Elara é marginal. E sempre será. Elara é sua própria heroína, e seu próprio símbolo de resistência. Ela está de pé, embora tão ferida. Ela é forte, embora tão criticada e tão sozinha. Ela é sua calma e doce mãe Iemanjá, mas também sua madrinha Iansã, a mãe das tempestades, das ventanias e dos raios. Elara tem a bênção de Xangô. Ela é o doce Saturno, mas também é Marte, o deus da guerra. O nome com que batizou aquela pinta em sua coxa esquerda, que não nasceu ali por acaso. Uma das mais bonitas estrelas de toda a carta celeste que existe em seu corpo. Essa carta celeste impressa em sua pele para que seus amores possam até se perder, mas que voltem a se encontrar. E Elara vai levar esta guerra até o fim. Até o fim. Ela está pronta. Sua alma está segura e serena. E ela se recupera, aguardando o momento de agir. Não se assuste se ela se erguer com ímpeto, com paixão e com garra. Elara não é outra senão aquela que andava adormecida dentro dela mesma. E, principalmente, ouça com atenção esta parte: principalmente, não se assuste se Elara vencer esta guerra. Ela é forte. E ela merece. Tanto quanto qualquer um de vocês.
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P.S.: “Seja marginal, seja herói” é um trabalho do artista carioca Hélio Oiticica, do ano de 1968, que gerou muita polêmica e discussão na cena cultural da época. Mais sobre esse trabalho aqui. Em meu texto, a marginalidade é abordada apenas no sentido de um não pertencimento, de estar às margens da sociedade, e de tudo o que é mainstream.. Essa marginalidade é aqui ostentada como um símbolo de resistência e de heroísmo do artista brasileiro.
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