sábado, 1 de agosto de 2015

O ovo apunhalado

Do conto "O Ovo Apunhalado", de Caio Fernando Abreu.

"Para ler ao som de Lucy in The Sky With Diamonds, de Lennon e McCartney."


"Uma tarde eu coloquei um cadeira de balanço no pátio da minha casa e fiquei ouvindo essa música. Tinha umas roupas brancas coarando no varal, um sol forte batendo bem na minha cara, eu comecei a suar, mas não tinha importância: eu queria ficar ali, no meio das roupas brancas, sentindo o sol quente bater na minha cabeça, balançando a cadeira e ouvindo aquela música. Quando o sol estava se tornando insuportável _ porque sempre chega um momento em que até o bom se torna insuportável _, quando chegou esse momento eu olhei para a janela deles e vi uma menina me olhando atrás das grades. Quando ela viu que eu olhava, começou a erguer devagar a blusa curta, cheia de listras coloridas, e me mostrou os seios. Entre os seios recém-nascidos, havia um ovo com um punhal cravado no centro de onde escorria um fio de sangue que descia pelo umbigo da menina, escorregava por cima do fecho da calça e pingava devagar bem no meio da clareira de sol onde eu estava.

_ Meu nome é Lúcia _ ela disse, _ Eu estou no céu com os diamantes."

Dedico o trecho deste último conto do livro de Caio Fernando Abreu a todos os ovos apunhalados da minha vida. A tudo o que foi assassinado antes de ter a grata oportunidade de nascer, e respirar. Aos sonhos, planos, amores que não puderam vir à tona. E a todos aqueles que ainda virão. E que o punhal não se faça destino. Que tudo vingue. Que tudo viva. Que tudo seja.


(Postado no facebook no dia 06 de abril de 2015)






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