Resenha: Homem no Escuro, de Paul Auster
Outubro de 2015
Não sabia se escreveria ou não uma
resenha sobre este livro. Não são todos os que me tocam e transformam, e que me
despertam esse desejo. Não sabia se escreveria algo, até que ele me
surpreendesse por sua inegável e intensa criatividade. Por sua doçura e
sensibilidade. Por sua habilidade em manipular emoções. Não sabia se escreveria
algo, até que minhas lágrimas acabassem por surgir, em um ou outro momento. Até
sentir, por vezes, que a dor que Paul Auster descrevia era minha, e que essa
dor sufocava. Até me apaixonar perdidamente à primeira vista, junto com Sonia e
August. Até sentir, junto com August, que “os deuses me pregaram uma peça, e a
garota por quem eu estava destinado a me apaixonar, a única pessoa que foi
colocada neste mundo para dar algum sentido à minha vida, foi arrebatada de mim
e lançada numa outra dimensão — um lugar inacessível, um lugar onde eu nunca
teria permissão de entrar.” Até me identificar com aquele seu “poema comprido e
ridículo sobre mundos paralelos, chances perdidas, as mancadas trágicas do
destino. Vinte anos de idade, e eu já me sentia amaldiçoado”, só para que
aquele reencontro acontecesse pouco depois, e as minhas próprias esperanças na
sabedoria dessa vida fossem renovadas. Até compreender, como August, que “tem
tanta coisa que nunca entendi em Sonia”, e “tem tanta coisa que nem ela
entendia em si mesma.” Até conhecer a teoria do filósofo italiano Giordano
Bruno sobre a possível existência de “um número infinito de mundos”, e isso
muito antes de Stephen Hawking, ainda no século XVI. Até me confrontar com a
ideia extremamente perturbadora de que “existem muitos mundos, e todos seguem
paralelos uns aos outros, mundos e antimundos, mundos e mundos-sombra, e cada mundo
é sonhado ou imaginado ou escrito por alguém num outro mundo. Cada mundo é a
criação de uma mente.” E imaginar, junto com August, que “é só pensar, e isso
tem toda a chance de acontecer.” Compreender, com ele, que “a verdade é que os
filhos não aprendem nada com os erros dos pais”, e reforçar minha tese de que a
experiência própria ainda é a nossa melhor mestra. Emocionar-me porque “durante
aqueles últimos anos, Betty me contou, Gil colocava bilhetinhos de amor nas
gavetas da escrivaninha dela, escondia os bilhetinhos no meio dos sutiãs,
combinações e calcinhas, e toda manhã, quando ela acordava e se vestia, achava
mais um bilhetinho de amor declarando que ela era a mulher mais fantástica do
mundo.” E porque “Betty morreu porque estava com o coração partido. Algumas
pessoas riem quando escutam essa frase, mas isso é porque
elas não conhecem nada do mundo. Pessoas morrem porque estão com o coração partido.
Acontece todo dia e vai continuar a acontecer, até o fim dos tempos.” E que,
apesar de tudo isso, “o tesão é uma constante humana, o motor que faz o mundo
girar”, e que “o mundo bizarro continua a girar” mesmo, independente dos nossos
desejos e dos nossos sonhos. Até encantar-me por Katya, por ironia a segunda
personagem estudante de cinema que encontro em um livro, com apenas dois meses
de separação entre um e outro. Novas sugestões de filmes e de diretores, e essa
lista imensa que não vai parar nunca de crescer. Até ler a segunda menção a Ozu
em livros diversos, por outra das muitas coincidências desta minha vida, bem
pouco tempo depois de eu ter tido contato com sua obra através de um diretor
que admiro muito, Wim Wenders. Diretor que, por sua vez, teve seu trabalho bastante
marcado pelos filmes desse mestre japonês, tendo inclusive parado as filmagens
de “Paris, Texas” para filmar o que viria a ser uma grande homenagem a Ozu, “Tokyo
Ga”. E toda essa minha gratidão pelo flerte eterno entre as várias formas de
arte, entre a literatura e o cinema, e vice-versa, em que todo amante das artes
se deleita como em uma imensa cama de veludo vermelho repleta de prazeres. E
toda essa minha identificação com Noriko, personagem de um filme de Ozu muito
admirado por August e Katya, “essa jovem que sofreu em silêncio por tanto
tempo, essa boa mulher que se recusa a acreditar que é boa, pois só os bons
duvidam de sua bondade, o que é exatamente aquilo que, antes de tudo, os torna
bons.” Porque “os maus sabem que eles são bons, mas os bons não sabem de nada.
Passam a vida perdoando os outros, mas não conseguem perdoar a si mesmos.” E,
de fato, não conseguem. Não consigo. E toda essa guerra acontecendo lá fora, e
aqui dentro ao mesmo tempo. Toda essa guerra que nos deixa acordados, no
escuro, muitas vezes sem conseguir dormir. inventando histórias que nos sejam minimamente
mais suportáveis do que toda essa nossa realidade louca. Toda essa madrugada
escura que desperta o pior em nós, os piores sentimentos que, muitas vezes, só
se vão quando aquele primeiro pássaro emite o seu primeiro som do dia, ali
naquela árvore, bem ao lado da nossa janela. E a vida então renasce, as
esperanças renascem, e precisam renascer, porque afinal esse “mundo bizarro
continua a girar.” E girar, e girar.
Homem no Escuro foi, de longe, um dos
melhores, mais densos, mais sensíveis e tocantes livros que eu li em muito
tempo. Criativo, surpreendente, curioso, doce, sensível, triste, arrebatador, pesado,
forte, áspero e dilacerante como a vida. Como toda vida. Não há como ler esta história e não
sair dela transformado e amadurecido, da maneira como eu saí. Desde já, neste meu
primeiro contato com sua obra, considero-me uma grande fã de Paul Auster.
“Toque em mim, alguém, toque em mim.
Ponha a mão no meu rosto e fale comigo...”
Toque em mim. Antes que o peito pare.
Antes que a luz da mente se apague. E que tudo seja fim.
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