quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Resenha: As Portas da Percepção

Resenha: As Portas da Percepção - Céu e Inferno, de Aldous Huxley
Setembro de 2015

Resenha meio atrasada, mas valendo.

Aldous Huxley vai muito além, nessa obra, de questionar os efeitos da mescalina, ingerindo ele mesmo a substância e associando seus resultados a experiências transcendentais, o que por si só já considero muito válido. Especialmente naquela época em que a contracultura nascia e os Beats se proliferavam, e que precedeu todo o movimento hippie e toda uma aura de libertação, de ruptura com normas rígidas vigentes, da busca pelo prazer, pela liberdade de pensamento e de ação, pela comunhão com o outro, pela geração de uma nova consciência e de uma nova forma de concepção do mundo, de si mesmos e da política de então. Apesar de não ser considerado um dos Beats, um dos porta-vozes oficiais da contracultura, Huxley influenciou de maneira marcante um dos maiores músicos surgidos naquele tempo: Jim Morrison, que retirou justamente do título deste livro o nome de sua banda, The Doors. Tudo isso já havia me deixado honestamente impressionada logo antes de começar, de fato, a ler esta obra de Huxley. Eu, que desde criança sempre ouvi minha mãe falar sobre o Admirável Mundo Novo, e quando enfim o li, adotei esse autor como um dos meus grandes favoritos na época. E confesso que Huxley o é até hoje.

Não, Huxley não se limita a fazer análises objetivas e didáticas do uso da mescalina e de outras substâncias alucinógenas. Ele questiona o uso dessas substâncias tanto como um tipo de resposta a uma necessidade real que as pessoas têm de escapar, por vezes, aos problemas diários, quanto como uma busca de um tipo qualquer de transcendência do espírito, ainda que por um período bastante limitado e completamente induzido por elementos externos. Ele não traz apenas a questão, cada vez mais incisiva e atual, da legitimidade do uso de drogas por parte de quem quer que seja, e de sua legalização ou condenação, mas também da busca da droga “ideal”, uma que não venha a provocar tantos efeitos colaterais negativos e que não produza um vício tão forte e nocivo. Ele traz a questão do uso de alucinógenos em tantos níveis, e tantos questionamentos amplos, a meu ver cada vez mais necessários, que eu realmente considero este um livro que precisa ser amplamente lido por nossa sociedade contemporânea. Um livro que precisa ser analisado, e questionado. Talvez algum tipo de resposta a toda essa questão das drogas possa surgir a partir daí. Ou quem sabe, no mínimo, uma outra luz possa ser lançada sobre a questão. Este livro mexeu muito com a minha visão em relação ao uso de drogas. Eu, que sempre acreditei que o caminho não era, e não é, a criminalização e a repressão dos usuários. Acredito que, quanto mais se cerca, mais a coisa explode. Não creio que seja por aí que iremos resolver essa questão. Por outro lado, não acredito que temos maturidade suficiente para lidar com uma liberação total de substâncias alucinógenas e entorpecentes. Mas acho, sim, que a questão deve ser cada vez mais discutida, e que uma alternativa qualquer, que não inclua uma total repressão e proibição, precisa sair daí. Muito já se perdeu, muita paz e muitas vidas já foram levadas por conta dessa questão. De maneira que é preciso debruçar-se cada vez mais sobre esse quadro.

Huxley nos traz, além de tudo, todo um questionamento sobre a sobrevivência da consciência à morte do corpo. Em Céu e Inferno, ele relaciona toda a problemática do uso dos alucinógenos a uma procura da transcendência do espírito, passando por várias sociedades, desde a antiguidade até então. O “céu” seria associado a uma experiência bem sucedida, de alteração e de uma ampliação da percepção de tudo aquilo que nos cerca, e o “inferno” seriam “bad trips”  experimentadas especialmente por aqueles que lidam com algum tipo de transtorno mental, como os esquizofrênicos. Eu mesma confesso que há muito, muito tempo, especialmente depois que li Verdade Tropical, de Caetano Veloso, aos meus dezessete anos de idade, tenho muita vontade de experimentar alguns tipos de alucinógenos, em especial a ayahuasca, aquela que é utilizada na seita do Santo Daime. Maitê Proença também escreveu maravilhas sobre o chá do Santo Daime em seu primeiro livro, Uma Vida Inventada. Já cheguei a folhear com muita curiosidade, em uma certa feira de livros, um livro imenso tratando apenas a respeito dessa substância. Mas sempre tive muito medo do efeito que esse tipo de coisa poderia produzir em mim, já que desde os meus dezoito anos enfrento crises apavorantes de ansiedade e de pânico. Tenho quase certeza de que o efeito seria uma “bad trip” parecida com o pior dos infernos. Mas um dia eu talvez ainda tome coragem, afinal já passei por coisas que não acredito serem capazes de ficar piores do que já foram um dia. Mas que fique bem claro que seria a título de autoconhecimento, e só. Apesar de já ter experimentado ou mesmo feito uso mais frequente de uma droga ou outra quando mais nova. Não estou aqui fazendo nenhum tipo de apologia ao uso de drogas. Essa não é a minha. Até porque acordada mesmo, em estado normal, já viajo horrores. Risos.

Mas Huxley ainda não pára por aí. Ele ainda faz um breve estudo relacionando o uso de alucinógenos e a busca do ser humano pela transcendência do espírito à maneira como o homem tem, desde a antiguidade, buscado reproduzir elementos “preternaturais” através de paramentos religiosos, através da arquitetura e do paisagismo, e através da arte em suas várias manifestações. Nem as artes cênicas, amplificadas mais tarde por técnicas de iluminação, nem o cinema ou a fotografia, advento que provocou nas artes visuais, em especial na pintura, toda uma revolução e um novo sentido de existir, escaparam à análise de Huxley. “Artes propiciadoras de visões”, assim o autor se refere a tais elementos. Ele analisa ainda o que chama de “desvalorização psicológica produzida pela tecnologia moderna”, e esclarece de que maneira isso ocorre em trechos como este: “Aqueles suntuosos reflexos de superfícies convexas, que tanto fascinaram Rembrandt, a ponto de ele jamais se cansar de representá-las em seus quadros, são hoje coisas banais no lar, na rua e na fábrica. Desapareceu o refinamento do prazer incomum. O que, outrora, constituiu um extraordinário enlevo de visionário foi agora transformado em pedaço de linóleo desprezado. (...) Há, no mundo moderno, cores vivas em quantidade suficiente para permitir a confecção de bilhões de flâmulas e revistas coloridas; de milhões de sinais de tráfego; de luzes traseiras, carros de bombeiros, e de empresas de refrigerantes às centenas de milhares; tapetes, papéis de parede e arte abstrata aos quilômetros quadrados. (...) A familiaridade traz consigo a indiferença.” Huxley consegue relacionar o uso de alucinógenos a toda uma questão, a toda uma crise que a arte enfrenta nos dias de hoje! Eu, sinceramente, achei todo o questionamento e todo o estudo dele excepcional. Vou inclusive voltar ali e dar a este livro cinco estrelas, e não apenas quatro, como tinha feito antes. Risos. Quanta amplitude de visão, e quanta antecipação de uma percepção de questões e de problemas que nos são hoje tão atuais! Eu realmente gostei muito de ter lido este livro, e de ter conhecido este outro lado pensador e visionário de um dos meus escritores favoritos. Não me admira o fato de sua obra ter influenciado tanto aquela geração de Jim Morrison, e de ter marcado tanto toda a arte desse músico, compositor e poeta. E, não bastasse tudo isso, ainda venho a descobrir que foi o avô de Aldous Huxley, o biólogo Thomas Henry Huxley, quem criou o termo "agnóstico". Como boa agnóstica que sou, fico, além de tudo, profundamente agradecida a ele e a toda a sua genética. Risos.

Perdão, quando comecei este texto, não pretendia fazer todo este tratado sobre o livro. Gostaria apenas de encerrar com uma frase de Huxley com a qual concordo muito:

“O passado não é uma coisa fixa e inalterável. Suas realidades vão sendo descobertas a cada geração, seus valores sofrem reavaliações, seus significados recebem novas definições, de acordo com as tendências e preocupações da época.”

De fato, Huxley. E eu diria que o contrário também ocorre. A sabedoria do passado também joga a sua imensa luz sobre o nosso presente, fazendo-nos reavaliar certas questões que consideramos atuais, e dar a elas um outro significado. Muito obrigada por ter aberto, a mim também, as portas da minha própria percepção e concepção da vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário