sábado, 11 de novembro de 2017

"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver"

"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas."
__ Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas

Registro meu do trabalho do fotógrafo norte americano Michael Lundgren no FIF 2015

Sabe o que realmente me incomoda? Exaspera? Entristece? É gente que se acha. Gente que se acha superior. Mais esperto. Mais inteligente. Mais talentoso. Mais capaz. Gente que acredita que flutua níveis acima do resto da humanidade. Gente que te trata feito uma mosquinha irritante daquelas que a gente abana a mão e espanta pra lá e pronto. Abuso. Isso, também, é abuso moral. Ainda que de forma velada. 

Quando morei em Belo Horizonte, em 2015, tive a grata oportunidade de ver toda a mostra do FIF (Festival Internacional de Fotografia) daquele ano, dividida entre vários espaços culturais da cidade. Neste ano, parte da mostra veio a ser exposta aqui em Ipatinga, e novamente fui ver. Registrei tudo mas ainda não tive oportunidade de postar. Bem, o fato é que em 2015 uma fotografia em específico me chamou muito a atenção. A princípio, a certa distância, pela beleza das cores e formas. Só quando me aproximei e entendi do que se tratava a imagem foi que me veio o choque, o horror, o nojo. Mas aquilo era absolutamente fascinante e eu não conseguia desviar os meus olhos da fotografia, nem por um segundo sequer. Fiquei ali, hipnotizada, presa a um limbo de horror, de beleza e de fascinação. Aquilo era a mais crua morte. Aquilo era a mais bela e cruel expressão dos ciclos da vida sobre esta terra. 

Me lembrei então das palavras de minha mãe, de nossas conversas sobre vida, espiritualidade e ciência. Se você parar para pensar, ela me disse um dia, todo o processo da morte é muito bonito. E eu disse bonito, mãe? Bonito como? Você percebe como a natureza é perfeita? Ela me perguntou. É um ciclo perfeito e muito bonito de renovação, tudo isso. O nascimento, o nosso tempo de viver, de aprender, de crescer, de criar e de amar, e então voltar à terra de onde viemos, e nosso próprio corpo já carrega em si todo o material biológico necessário para se transformar e consumir aquele corpo sem vida que já não tem mais a utilidade que tinha antes, mas que vai alimentar outras espécies de vida e auxiliar na criação de outras espécies ainda. Tudo isso num equilíbrio maravilhoso, num ciclo eterno de criação, destruição e renovação. Como o lindo deus indiano Shiva, eu pensei. O mais poderoso dentre todos os deuses cultuados pelos hindus. 

A fotografia dessa raposa morta, em estado de putrefação, crua, violenta, escancarada e em belos tons de verde faz parte da série "Matter", de Michael Lundgren, fotógrafo norte americano. Para mim, a fotografia mais bela e significativa de toda a mostra. Aquela que nos sacode, que nos desperta, que diz ei!, quem é que você acredita que é, afinal? 

Somos todos filhos da mesma Terra, todos iguais em nossas capacidades, apenas sujeitos a coordenadas de espaço e de tempo diversas e, portanto, a diferentes estágios de nossa evolução. Abaixe essa cabeça! Pare de viver em função do seu próprio umbigo! Desça desse pedestal imaginário que você construiu sobre fundações de ilusão, com argamassa de absinto e tijolos de sonho e alienação. Somos humanos, somos iguais e estamos aqui para evoluirmos juntos. E no fim de toda essa nossa existência terrena, seremos exatamente como essa raposa morta, verde e putrefata, e daremos lugar a tantos outros que ainda virão. E se tivermos muita sorte, não seremos esquecidos. Humildade. Compaixão. Amor. Estas são as "moedas de troca" que realmente possuem valor nesta vida. Quando você for essa raposa verde, todo o seu orgulho e toda a sua pose de nada terão valido a pena.

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