segunda-feira, 7 de julho de 2014

Regresso sem nome


 

Eu bem queria aquela volta, por cima. Uma que tivesse um nome. Uma que estampasse essa nova fase, esse retorno à vida. Esse querer tudo ao mesmo tempo. Esse acreditar que tudo ao mesmo tempo é possível.

Queria promessas. Queria certezas. Queria a estrada de tijolos amarelos da Dorothy. Mas é que a minha estrada, a minha história, é bonita, e é feia. E é dúvida. E é dor.

Hoje a madrugada foi de insônia, e dor. Pensei em estrear o novo blog com um texto antigo, que me parece ainda agora tão atual, tão real. Tão em sintonia com o que vivo agora. "Restos", o título. Mas descobri que, da lembrança, dos registros, só mesmo o título restou. E eu que pensava ter sido sempre tão cuidadosa, guardando tudo o que escrevia em documentos do Word. Enfim, passeando pelos arquivos, encontrei um outro, mesma pegada, mesmo feeling. E colo aqui, na íntegra.

Fica essa sensação constante de que é comprovadamente impossível preencher a mim mesma com as peças que faltam. Do tamanho exato. Da maneira exata. E, portanto, a solução tem sido, ano a ano, dia a dia, tentar remendar as peças que sobram. Tentar ir encaixando os restos que me são atirados. Aquele Tetris meia-boca. Só para não ter que sentir o gosto amargo, a sensação dilacerante do mais puro vazio.

É assim que retorno ao mundo dos blogs. Um regresso sem nome. Um título no qual não consegui pensar. Mas, apesar de tudo, retornar é sempre bom. No fundo, é mesmo verdade. "There's no place like home."


Foi por isso que nunca te amei

Para E. S.
22 de Setembro de 2008

Olho o papel branco sobre o envelope, giro a caneta entre os dedos, mordo-lhe a tampa. Ah, os começos.

Sei exatamente o que quero te dizer. Mas o branco da folha insiste em me abduzir, hipnotizar, arrancar do baralho de sentimentos sem nome que dançam, debochados, aqui dentro. Começo, paro, olho as primeiras linhas, e as odeio. Odeio começos. E sei o porquê: todo começo traz, implícito, um fim. Finais são uns filhos da puta. Pode ser a mais bela das histórias, o mais belo dos finais. Mas é final. Se houver uma resposta tua, também ela vai ter um final. Odeio tudo o que é volátil, impermanente, tudo o que está desgraçadamente acorrentado às leis da física. O grande sonho do meu avô era inventar uma máquina que, uma vez posta a funcionar, não viesse mais a parar, nunca. Um moto-contínuo. Meu grande sonho é abolir todos os finais. Histórias, sensações, horas deveriam poder ser vividas e revividas outra vez, outra vez, outra vez…

É que ninguém me toma assim, com tamanho ímpeto, aperta contra a parede, devora com seus beijos, com seu sexo, puxa meus cabelos, bagunça meus sentidos, marca minha pele, rouba meu fôlego e meu juízo e sai então, satisfeito, andando sem olhar para trás. E o pior: sem coragem de dizer adeus.

Sabes, já tinha visto tuas costas antes. Antes mesmo de te conhecer. Vi nas tuas palavras. E depois, ouvi na tua voz. Li nos teus olhos, no teu jeito de sorrir, de falar, de calar e de me ouvir. Senti no teu corpo, na tua pressa de me possuir. No teu jeito desesperado de tentar se livrar do gosto de outra mulher procurando sentir o meu. Mas já não sentias nada. Já estavas irremediavelmente envenenado, possuído por inteiro, por dentro e por fora, e eu vi.

Ah, sim, eu soube do fim antes de tudo começar. Soube naquela madrugada, naquele aeroporto frio, enquanto procurava dominar minha impaciência, meu sono atrasado, minha febre de trinta e nove graus. E ali mesmo já procurava arrancar de mim o inexplicável carinho que sentia por tudo o que vinha de ti, o desejo de te abraçar forte e a ilusão de que eu talvez conseguisse te prender naquele longo e silencioso abraço. Naquele abraço forte, que foi a única coisa que pedi que fizesses quando nos víssemos pela primeira vez. E não me negaste.

Enfim, arranquei tudo de dentro de mim naquela rodoviária, te expulsei daqui de dentro junto com as lágrimas que, fraca, deixei cair naquele chão imundo, como um filho indesejado que é violentamente extirpado de um ventre e atirado numa lixeira qualquer.

Foi por isso que nunca te amei. Nunca te amei porque te matei assim que nossos corpos se separaram. Como uma Viúva-negra que mata e devora o macho assim que termina a cópula. Arranquei-te de mim antes que crescesses. Antes que me tomasses a alma. E o peito.

Arranquei? Se queres saber, ainda vejo teus olhos, ainda sinto teus dedos na minha sobrancelha, ainda lembro da tua voz, sussurrada, quando disseste meu nome pela primeira vez. Ainda sinto teu cheiro, teu gosto, tudo. Sabes, bastava que tivesses aberto uma passagem, a menor delas. Eu faria dela uma porta, e entraria por ela. Mas não fiz. Não entrei. Eu nunca, nunca te amei.

Tiro a caneta do papel, examino a caligrafia impaciente, cansada, e vejo nela mais dor do que deveria haver. A dor do que nunca houve. A pior das dores.

Nossa história, como esquecer?, começou ao som de Chico, que nós dois ouvíamos tanto naqueles dias. Era cada um no seu lugar, uma música em comum e aquela vontade de estar junto.

“Quero ficar no teu corpo
Feito tatuagem”

Então houve aquela música que ouvimos juntos, dividindo o fone de ouvido no meio de um beijo. Era uma composição de um amigo teu. Lady Jane, como naquela canção dos Rolling Stones.

E foi na voz de Nina Simone que nossa história terminou. Num disco emprestado por meu pai. Naquela letra que, sem que ele desconfiasse, muito menos tu, dizia exatamente o que eu estava sentindo. 

For all we know
We may never meet again”

Essa eu ouvi sozinha. Largada na cama. E nela fiquei por dias. E tu nunca, nunca soubeste.

E a previsão estava certa. Nunca mais nos vimos.

Foi por tudo isso, E. Pelo que vivemos, e pelo que deixamos de viver. 

Foi por tudo isso 
que eu nunca te amei.

2 comentários:

  1. Amo tudo nesse texto! Santo talento, minina. Faça isso mais vezes.

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    1. Hahaha, obrigada lindinha! Farei sim, muitas outras vezes! É só o recomeço! ;-)

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