Este não é
um texto de protesto. É um texto sobre marginalidade. É um texto sobre dor, e solidão. E arte.
Elara vinha
de uma família modesta. Cinco irmãos. Um deles adotivo. Seus pais eram dois
românticos idealistas, queriam fazer a diferença no mundo. Queriam diminuir a
dolorosa fila de espera, nas creches, de tantas crianças por um lar. Queriam
fazer a diferença no mundo de uma criança, uma só que fosse. E fizeram. Mas a
prática, a dura vida prática, veio lhes mostrar, a todos, que nada haveria de
ser tão simples assim. Cinco crianças para vestir e educar. Cinco bocas, e
cinco sonhos, para alimentar. Aniversários. Dia das Crianças. Natal. E fizeram
o melhor que puderam. Sempre, o melhor. Enquanto puderam, os filhos estudaram
nas melhores escolas. Essa era a prioridade da família. Porque era a educação,
ah, o idealismo dos pais!, o que iria garantir o futuro dos filhos. Não era o
berço. Não era a política. Não era qualquer tipo de influência, ou de
desonestidade. Para eles, não era. Eram pais éticos demais. Honestos demais.
Bons demais para este mundo.
Elara se
encantava com tudo. Com as flores, com os bichos, com as plantas, com os
insetos, com as estrelas, com a poesia, com a música, com os livros. Com a
arte. Elara tinha essa pressa de viver tão própria das crianças curiosas e
cheias de vitalidade. Talvez por ter escapado à morte, aos quatro meses de
idade, durante uma séria epidemia de meningite. Quatro meses de idade, e aquela
sensação enlouquecedoramente angustiante de solidão já deixava suas marcas
profundas nela, já que precisara ser isolada, sob o risco de pegar alguma
infecção, e por dias a fio não pudera ver ou ser tocada pelos pais. Ou então
por ter sido internada aos cinco anos, por dias e dias, quando, pela primeira
vez na vida, lembra-se de ter sentido uma imensa sensação de tristeza e
melancolia por estar só. Talvez, por todas essas coisas, quisesse compensar
tudo, e até os nove anos de idade ela foi uma das crianças mais cheias de vida
e alegria de que já se teve notícias. Aos seis anos, sonhava em ser bailarina
clássica, e ficava na pontinha dos pés e movimentava os bracinhos como a mais
perfeita Odette, em O Lago dos Cisnes, quando as amiguinhas duvidavam de que
ela fazia ballet. Mas ela ainda não fazia ballet. Muitos anos ainda se
passariam até que Elara pudesse ser capaz de pagar, ela mesma, por seu grande
sonho de ser bailarina.
Filha de pai
músico, pianista e maestro, e de mãe desenhista e escritora, Elara, já na
barriga da mãe, ouvia música clássica. Era para que a gestação, e a filha, se
desenvolvessem calmas. As pessoas, bem mais tarde, diziam, de fato, que Elara
era calma. Ela teria gostado, então, de ter se lembrado da razão. Mas nunca se
lembrava. E nunca a mencionava. O fato é que Elara percebeu desde cedo que era
diferente. Que tinha interesses diferentes. Que suas brincadeiras preferidas
eram diferentes das dos outros. Eram brincadeiras solitárias. Desenhava muito.
Cantava sozinha. Amava brincar de fazer esculturas, sozinha, com bolas de
argila branca que seus pais compravam de quando em quando, porque não eram
baratas. Doeu a alma quando um dia disseram que não as poderiam comprar mais.
Mas aguentou, firme, e até tentou trabalhar o barro que havia no quintal de sua
casa. Mas, quando seco, ele se quebrava todo. Seu lado escultora acabou
morrendo ali. Sem assistência. Sem um mecenas qualquer que a salvasse então,
ainda que com tão pouca idade.
Aos cinco
anos de idade, aprendeu com a mãe, uma guerreira professora do Estado, a ler e
a escrever. Ela se lembra de tudo: daquele espaço mágico entre a cama de casal
e a janela aberta, das duas sentadas, de pernas cruzadas, do livro no chão, “A
Casinha Feliz”. As risadas da mãe, o sorriso da mãe, o som doce e calmo da voz
da mãe, o olhar amoroso da mãe. Ela nunca, nunca se esqueceu. Foi ali que ela
se apaixonou pela literatura. Foi ali que ela começou a ler todos os livrinhos
infantis que existiam na casa, e que também começou a escrever, e nunca mais
parou. Aos seis anos, escreveu e ilustrou o seu primeiro livrinho, que foi
organizado e passado a limpo com a bonita letra de engenheiro do pai, e com o
qual concorreu, aos sete anos de idade, em seu primeiro concurso de literatura
infantil. Ganhou uma medalha de primeiro lugar, que guarda com imenso carinho
até os dias de hoje. Aprendeu a usar a antiga máquina de escrever dos pais, e
não a largou mais. Passava tardes criando histórias e escrevendo
freneticamente. Adquiriu o estranho hábito de ler na cama enquanto escutava
música. A Baía dos Golfinhos, de Lucília Junqueira de Almeida Prado, foi o
primeiro livro que a emocionou e marcou. Foi quando decidiu que queria
trabalhar no mar, com os peixes. Queria ser bióloga marinha, mas ainda não
sabia muito bem como era isso. A vida acabaria mostrando outros caminhos a
Elara. Depois ela se apaixonou pela história que o pai contava aos cinco
filhos, todas as noites, um capítulo por noite, com aquela voz bonita e sonora
de barítono: A Montanha Encantada, de Maria José Dupré. Depois vieram os livros
todos da Coleção Vagalume, e os de Monteiro Lobato. E o primeiro livro mais
sério que leu na vida, ainda aos onze anos de idade: Fernão Capelo Gaivota, de
Richard Bach. Esse ela leria ainda algumas outras vezes. E os desenhos não
paravam: Elara criava as suas próprias bonecas, as que não podia ter de
verdade, em desenhos no papel, e as recortava, e brincava com elas. Fazia-as do
jeito que queria. Do jeito que sonhava. E os desenhos iam ficando melhores, e
melhores a cada dia. Até que a pintura também surgiu em sua vida. E também o
teatro e o violão. Mas aí já estamos pulando alguns capítulos na história.
O fato é
que, por volta dos dez, onze anos de idade, na época da pré-adolescência, “aquilo”
começou a acontecer. Elara se sentia deslocada e imensamente sozinha em sua
arte, e em sua maneira diferente de ser. Passava as horas na escola perdida nos
próprios pensamentos, criando histórias em sua mente, e praticamente não tinha
amigos com quem brincar, porque todos evitavam aquela menina tão diferente e tão
calada. As coisas começaram a ir muito mal na escola. E muito mal em casa
também. Porque quando os irmãos todos chegavam com as notas da escola, todas
notas máximas, Elara chegava com notas médias. Ela não pertencia àquele lugar.
Ela parecia não pertencer a lugar algum. Elara já era marginal. Desgraçadamente
marginal. E ela se perdia e se refugiava cada vez mais em sua arte. Em seu
mundo interno. Os pais comparavam seu desempenho fraco ao desempenho exemplar
dos irmãos, e a criticavam negativamente, o que a fazia sofrer muito, e só a
isolava cada vez mais em seu mundo. Cada vez mais inalcançável. Até que um dia,
depois de uma briga com o pai, entre os dez e os onze anos, Elara se feriu pela
primeira vez. Arranhou as pernas até sangrarem, e as marcas ficaram ali por
vários, vários dias. Outros episódios se seguiram, e ela desenvolveu algo de
que não gosta de falar de jeito nenhum, porque mexia muito com sua imagem e com
sua vaidade, justamente no momento em que descobria seu corpo, sua sexualidade,
e sua primeira grande paixão, aquela que ela não viria nunca mais a esquecer. E
quando, enfim, soube que era correspondida, era tarde demais: ele estava se
mudando para longe, e praticamente nunca mais voltaram a se ver. Os dois tinham
apenas doze anos de idade, mal completos. As mancadas do destino. Um desses
erros imperdoáveis da existência. Era um novembro chuvoso, e Elara ouviu “Patience”, dos Guns N’ Roses,
muitas e muitas e muitas vezes enquanto chorava na cama, ou no banheiro. E Elara
não sabia do pior. Ela só viria a saber muito, muito mais tarde: já havia
começado a desenvolver, com tão pouca idade, os primeiros sintomas de um
Transtorno de Personalidade Borderline.
Ainda assim,
tornou-se bailarina aos dezessete. E logo depois, professora de dança. Sempre
questionando todas as religiões e sua própria espiritualidade, fazia dos palcos
o seu templo, e de sua arte, sua religião. Experimentou o teatro, mas era
excessivamente tímida para ele. Expressar-se através dos movimentos do seu
corpo lhe era muito mais natural, e de certa forma, seguro. Quando dançava, ela
sentia uma eletricidade linda envolver todo o seu corpo, como em uma
manifestação divina. Era tomada pela dança, como se por um anjo. E assim foi
até que, aos dezoito anos, outros sintomas começaram a surgir. Fobias, crises
de pânico, crises de ansiedade que lhe tiravam o ar, disparavam-lhe o coração, doíam-lhe
o peito, deixavam-na no mais completo desespero, numa certeza louca de que
morreria a qualquer minuto, de um ataque cardíaco, ou de um aneurisma qualquer.
E as crises de mania. E as depressões. As depressões arrasadoras, profundas.
Sintomas que a atormentariam por toda a vida, e que acabariam por desestruturar
todos os seus planos e sonhos, toda a sua vida pessoal, afetiva, acadêmica e
profissional. Elara rezava. Rezava para que pudesse um dia ser alguém normal.
Ainda que aquela normalidade fosse lhe custar, através do Lítio e de outros estabilizadores de humor, quase toda a sua sensibilidade, e
quase toda a sua arte. Era extremamente desesperador. Era enlouquecedor. Elara
só queria que alguém a abraçasse, e lhe dissesse que tudo iria ficar bem, e que
haveria uma cura, em algum momento, em algum lugar.
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P.S.: “Seja marginal, seja herói” é um trabalho do artista carioca Hélio Oiticica, do ano de 1968, que gerou muita polêmica e discussão na cena cultural da época. Mais sobre esse trabalho aqui. Em meu texto, a marginalidade é abordada apenas no sentido de um não pertencimento, de estar às margens da sociedade, e de tudo o que é mainstream.. Essa marginalidade é aqui ostentada como um símbolo de resistência e de heroísmo do artista brasileiro.
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