domingo, 11 de outubro de 2015

Seja marginal. Seja artista. Seja herói.

Este não é um texto de protesto. É um texto sobre marginalidade. É um texto sobre dor, e solidão. E arte.

Elara vinha de uma família modesta. Cinco irmãos. Um deles adotivo. Seus pais eram dois românticos idealistas, queriam fazer a diferença no mundo. Queriam diminuir a dolorosa fila de espera, nas creches, de tantas crianças por um lar. Queriam fazer a diferença no mundo de uma criança, uma só que fosse. E fizeram. Mas a prática, a dura vida prática, veio lhes mostrar, a todos, que nada haveria de ser tão simples assim. Cinco crianças para vestir e educar. Cinco bocas, e cinco sonhos, para alimentar. Aniversários. Dia das Crianças. Natal. E fizeram o melhor que puderam. Sempre, o melhor. Enquanto puderam, os filhos estudaram nas melhores escolas. Essa era a prioridade da família. Porque era a educação, ah, o idealismo dos pais!, o que iria garantir o futuro dos filhos. Não era o berço. Não era a política. Não era qualquer tipo de influência, ou de desonestidade. Para eles, não era. Eram pais éticos demais. Honestos demais. Bons demais para este mundo.

Elara se encantava com tudo. Com as flores, com os bichos, com as plantas, com os insetos, com as estrelas, com a poesia, com a música, com os livros. Com a arte. Elara tinha essa pressa de viver tão própria das crianças curiosas e cheias de vitalidade. Talvez por ter escapado à morte, aos quatro meses de idade, durante uma séria epidemia de meningite. Quatro meses de idade, e aquela sensação enlouquecedoramente angustiante de solidão já deixava suas marcas profundas nela, já que precisara ser isolada, sob o risco de pegar alguma infecção, e por dias a fio não pudera ver ou ser tocada pelos pais. Ou então por ter sido internada aos cinco anos, por dias e dias, quando, pela primeira vez na vida, lembra-se de ter sentido uma imensa sensação de tristeza e melancolia por estar só. Talvez, por todas essas coisas, quisesse compensar tudo, e até os nove anos de idade ela foi uma das crianças mais cheias de vida e alegria de que já se teve notícias. Aos seis anos, sonhava em ser bailarina clássica, e ficava na pontinha dos pés e movimentava os bracinhos como a mais perfeita Odette, em O Lago dos Cisnes, quando as amiguinhas duvidavam de que ela fazia ballet. Mas ela ainda não fazia ballet. Muitos anos ainda se passariam até que Elara pudesse ser capaz de pagar, ela mesma, por seu grande sonho de ser bailarina.

Filha de pai músico, pianista e maestro, e de mãe desenhista e escritora, Elara, já na barriga da mãe, ouvia música clássica. Era para que a gestação, e a filha, se desenvolvessem calmas. As pessoas, bem mais tarde, diziam, de fato, que Elara era calma. Ela teria gostado, então, de ter se lembrado da razão. Mas nunca se lembrava. E nunca a mencionava. O fato é que Elara percebeu desde cedo que era diferente. Que tinha interesses diferentes. Que suas brincadeiras preferidas eram diferentes das dos outros. Eram brincadeiras solitárias. Desenhava muito. Cantava sozinha. Amava brincar de fazer esculturas, sozinha, com bolas de argila branca que seus pais compravam de quando em quando, porque não eram baratas. Doeu a alma quando um dia disseram que não as poderiam comprar mais. Mas aguentou, firme, e até tentou trabalhar o barro que havia no quintal de sua casa. Mas, quando seco, ele se quebrava todo. Seu lado escultora acabou morrendo ali. Sem assistência. Sem um mecenas qualquer que a salvasse então, ainda que com tão pouca idade.

Aos cinco anos de idade, aprendeu com a mãe, uma guerreira professora do Estado, a ler e a escrever. Ela se lembra de tudo: daquele espaço mágico entre a cama de casal e a janela aberta, das duas sentadas, de pernas cruzadas, do livro no chão, “A Casinha Feliz”. As risadas da mãe, o sorriso da mãe, o som doce e calmo da voz da mãe, o olhar amoroso da mãe. Ela nunca, nunca se esqueceu. Foi ali que ela se apaixonou pela literatura. Foi ali que ela começou a ler todos os livrinhos infantis que existiam na casa, e que também começou a escrever, e nunca mais parou. Aos seis anos, escreveu e ilustrou o seu primeiro livrinho, que foi organizado e passado a limpo com a bonita letra de engenheiro do pai, e com o qual concorreu, aos sete anos de idade, em seu primeiro concurso de literatura infantil. Ganhou uma medalha de primeiro lugar, que guarda com imenso carinho até os dias de hoje. Aprendeu a usar a antiga máquina de escrever dos pais, e não a largou mais. Passava tardes criando histórias e escrevendo freneticamente. Adquiriu o estranho hábito de ler na cama enquanto escutava música. A Baía dos Golfinhos, de Lucília Junqueira de Almeida Prado, foi o primeiro livro que a emocionou e marcou. Foi quando decidiu que queria trabalhar no mar, com os peixes. Queria ser bióloga marinha, mas ainda não sabia muito bem como era isso. A vida acabaria mostrando outros caminhos a Elara. Depois ela se apaixonou pela história que o pai contava aos cinco filhos, todas as noites, um capítulo por noite, com aquela voz bonita e sonora de barítono: A Montanha Encantada, de Maria José Dupré. Depois vieram os livros todos da Coleção Vagalume, e os de Monteiro Lobato. E o primeiro livro mais sério que leu na vida, ainda aos onze anos de idade: Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. Esse ela leria ainda algumas outras vezes. E os desenhos não paravam: Elara criava as suas próprias bonecas, as que não podia ter de verdade, em desenhos no papel, e as recortava, e brincava com elas. Fazia-as do jeito que queria. Do jeito que sonhava. E os desenhos iam ficando melhores, e melhores a cada dia. Até que a pintura também surgiu em sua vida. E também o teatro e o violão. Mas aí já estamos pulando alguns capítulos na história.

O fato é que, por volta dos dez, onze anos de idade, na época da pré-adolescência, “aquilo” começou a acontecer. Elara se sentia deslocada e imensamente sozinha em sua arte, e em sua maneira diferente de ser. Passava as horas na escola perdida nos próprios pensamentos, criando histórias em sua mente, e praticamente não tinha amigos com quem brincar, porque todos evitavam aquela menina tão diferente e tão calada. As coisas começaram a ir muito mal na escola. E muito mal em casa também. Porque quando os irmãos todos chegavam com as notas da escola, todas notas máximas, Elara chegava com notas médias. Ela não pertencia àquele lugar. Ela parecia não pertencer a lugar algum. Elara já era marginal. Desgraçadamente marginal. E ela se perdia e se refugiava cada vez mais em sua arte. Em seu mundo interno. Os pais comparavam seu desempenho fraco ao desempenho exemplar dos irmãos, e a criticavam negativamente, o que a fazia sofrer muito, e só a isolava cada vez mais em seu mundo. Cada vez mais inalcançável. Até que um dia, depois de uma briga com o pai, entre os dez e os onze anos, Elara se feriu pela primeira vez. Arranhou as pernas até sangrarem, e as marcas ficaram ali por vários, vários dias. Outros episódios se seguiram, e ela desenvolveu algo de que não gosta de falar de jeito nenhum, porque mexia muito com sua imagem e com sua vaidade, justamente no momento em que descobria seu corpo, sua sexualidade, e sua primeira grande paixão, aquela que ela não viria nunca mais a esquecer. E quando, enfim, soube que era correspondida, era tarde demais: ele estava se mudando para longe, e praticamente nunca mais voltaram a se ver. Os dois tinham apenas doze anos de idade, mal completos. As mancadas do destino. Um desses erros imperdoáveis da existência. Era um novembro chuvoso, e Elara ouviu “Patience”, dos Guns N’ Roses, muitas e muitas e muitas vezes enquanto chorava na cama, ou no banheiro. E Elara não sabia do pior. Ela só viria a saber muito, muito mais tarde: já havia começado a desenvolver, com tão pouca idade, os primeiros sintomas de um Transtorno de Personalidade Borderline.

Ainda assim, tornou-se bailarina aos dezessete. E logo depois, professora de dança. Sempre questionando todas as religiões e sua própria espiritualidade, fazia dos palcos o seu templo, e de sua arte, sua religião. Experimentou o teatro, mas era excessivamente tímida para ele. Expressar-se através dos movimentos do seu corpo lhe era muito mais natural, e de certa forma, seguro. Quando dançava, ela sentia uma eletricidade linda envolver todo o seu corpo, como em uma manifestação divina. Era tomada pela dança, como se por um anjo. E assim foi até que, aos dezoito anos, outros sintomas começaram a surgir. Fobias, crises de pânico, crises de ansiedade que lhe tiravam o ar, disparavam-lhe o coração, doíam-lhe o peito, deixavam-na no mais completo desespero, numa certeza louca de que morreria a qualquer minuto, de um ataque cardíaco, ou de um aneurisma qualquer. E as crises de mania. E as depressões. As depressões arrasadoras, profundas. Sintomas que a atormentariam por toda a vida, e que acabariam por desestruturar todos os seus planos e sonhos, toda a sua vida pessoal, afetiva, acadêmica e profissional. Elara rezava. Rezava para que pudesse um dia ser alguém normal. Ainda que aquela normalidade fosse lhe custar, através do Lítio e de outros estabilizadores de humor, quase toda a sua sensibilidade, e quase toda a sua arte. Era extremamente desesperador. Era enlouquecedor. Elara só queria que alguém a abraçasse, e lhe dissesse que tudo iria ficar bem, e que haveria uma cura, em algum momento, em algum lugar.

Elara foi, como um pássaro de fogo, sua amada Fênix, incontáveis vezes ao inferno, e voltou. Mais forte e mais forte a cada vez. Descobriu forças onde nunca desconfiou que elas existiriam. E a muito custo conseguiu completar alguns períodos da faculdade que havia escolhido, Arquitetura, e ainda escrever alguns textos, alguns contos e alguns projetos de livro, além de um livro completo. Até que a doença de sua mãe retornou, e ela veio a falecer. O que acabou por desestruturar ainda mais a vida de Elara, e todas as suas tentativas de seguir seus planos e sonhos. Muitos anos foram perdidos com tratamentos equivocados, até que Elara encontrou um anjo que conseguiu dar um pouco de estabilidade à sua vida, equilibrar aos poucos a química de seu corpo, e fazê-la voltar a sonhar com uma vida, com um presente, com um futuro. Elara voltou a sonhar. Elara voltou a fazer planos. E se apaixonou outra vez, como nunca antes havia se apaixonado. Voltou a colocar sua vida em movimento, voltou a seguir os trilhos da arte e, principalmente, aqueles da sua própria arte. Ainda que sua grande paixão tenha sido só uma ilusão, a mais linda de todas elas, ainda que continue a levar uma vida na solidão, como sempre levou, e ainda que muitos a vejam apenas como alguém esnobe, que gosta de contar vantagem das coisas que sabe e das coisas que viu nessa sua já longa vida, sem levar em conta que Elara só o faz porque a cultura e a arte são as suas grandes paixões nessa vida, e sem elas Elara não saberia respirar; ainda que seu próprio pai tenha começado a implicar com essa volta recente de toda uma vitalidade e de uma paixão pela vida que haviam sido perdidas, e ainda que ele próprio veja Elara como alguém esnobe, alguém que conta vantagem do que sabe e do que viu (me diz, como é que se pode ser esnobe e contar vantagem de algo que é para nós uma grande paixão?), temendo, quem sabe, um abandono inesperado num momento em que ele se sente tão só, tão envelhecido e tão frustrado; ainda que Elara tenha visto seu mundo desabar de uma só vez neste ano de 2015, ainda que todas essas coisas, que não lhe são leves, estejam em seu caminho, Elara resiste. Elara é uma artista. Elara é marginal. E sempre será. Elara é sua própria heroína, e seu próprio símbolo de resistência. Ela está de pé, embora tão ferida. Ela é forte, embora tão criticada e tão sozinha. Ela é sua calma e doce mãe Iemanjá, mas também sua madrinha Iansã, a mãe das tempestades, das ventanias e dos raios. Elara tem a bênção de Xangô. Ela é o doce Saturno, mas também é Marte, o deus da guerra. O nome com que batizou aquela pinta em sua coxa esquerda, que não nasceu ali por acaso. Uma das mais bonitas estrelas de toda a carta celeste que existe em seu corpo. Essa carta celeste impressa em sua pele para que seus amores possam até se perder, mas que voltem a se encontrar. E Elara vai levar esta guerra até o fim. Até o fim. Ela está pronta. Sua alma está segura e serena. E ela se recupera, aguardando o momento de agir. Não se assuste se ela se erguer com ímpeto, com paixão e com garra. Elara não é outra senão aquela que andava adormecida dentro dela mesma. E, principalmente, ouça com atenção esta parte: principalmente, não se assuste se Elara vencer esta guerra. Ela é forte. E ela merece. Tanto quanto qualquer um de vocês.
.
.
P.S.: “Seja marginal, seja herói” é um trabalho do artista carioca Hélio Oiticica, do ano de 1968, que gerou muita polêmica e discussão na cena cultural da época. Mais sobre esse trabalho aqui. Em meu texto, a marginalidade é abordada apenas no sentido de um não pertencimento, de estar às margens da sociedade, e de tudo o que é mainstream.. Essa marginalidade é aqui ostentada como um símbolo de resistência e de heroísmo do artista brasileiro.
.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário