quinta-feira, 15 de outubro de 2015

A queda

Ela vê o céu escurecer devagar e as primeiras estrelas aparecerem, aquele tom de azul que sempre foi o seu favorito. Mas hoje a lua se ri dela. Sabe, só aquela linha fina, aquele sorriso do gato de Alice, de quem sabe de todas as coisas mas não vai dizer nenhuma delas. Mas ela só quer saber...

Quais serão as palavras mais certas? Os passos mais adequados? O movimento mais pertinente? O gesto mais significativo? A bailarina hoje está perdida. Descoordenada. Desorientada. Hoje ela é apenas humana, e está sentada na plateia, à espera. De que as cortinas se abram. De que uma luz qualquer se acenda. Fora, e dentro dela. 

Ela sabe que deveria ter esperado. Esperado o tempo dele. O tempo dos seus passos, da sua respiração, do abrir e fechar dos olhos dele, ela deveria ter esperado, ela deveria. Mas ela preparou o salto cedo demais, e o impulso foi tanto, e a vontade era tanta, que ele não conseguiu segurá-la depois daquela sequência de glissade e grand jeté. Os braços dele ficaram no ar. Ela foi de encontro ao linóleo. O pas de deux estava arruinado.

As vaias do público. As luzes se apagando. As cortinas se fechando atrás dela. Os passos dele atravessando a coxia e desaparecendo, sem ousar olhá-la nos olhos. E aquela dor, que de tão grande por dentro, transbordava e também doía por fora, e sufocava. As lágrimas que ela não conteve. Por dias, e dias.

Decidiu nunca mais voltar a dançar. Os pés sempre machucados, as torções e as dores constantes, e a cada vez que ia ao chão, a dor era maior, e maior. E aquela tinha sido a maior dor de toda a sua vida, a maior das quedas. Decidido. Não voltaria mais a dançar. I won't dance, don't ask me. 'Cause my heart won't let my feet do things that they should do.

Meses se passaram, e ela ia murchando aos poucos, perdendo a beleza, o brilho. A vontade de viver. A saudade dos palcos, daquelas luzes todas. A saudade do público, dos aplausos, das flores ao fim de cada espetáculo. A saudade da maneira como se sentia quando dançava, daquela eletricidade toda percorrendo o seu corpo, a saudade de sentir-se viva, imortal sob as luzes. Infinita. A saudade dele. Acima de tudo, a saudade dele.

Ela deveria ter esperado... deveria ter esperado... antes que a queda acontecesse... antes que ele lhe virasse as costas... que as luzes se apagassem... que as cortinas se fechassem atrás dela... antes que... e agora ela não sabia o que fazer para alcançá-lo outra vez... tinha sido tão impulsiva, e tão burra... ela nem sabia mais se ainda sabia dançar... One day I’m gonna find that light inside of me again... one day I’m gonna find the perfect moves... one day I’m gonna find the perfect words... one day I’m gonna reach you... I’m gonna reach you...

Apoiou-se na beirada da mesa e começou a mover os pés, um depois do outro. Meia ponta, ponta, meia ponta, desce. Meia ponta, ponta... espantou-se consigo mesma quando viu a ponta do pé direito riscar o chão num semicírculo e desenhar um rond de jambe perfeito. Ela não tinha se esquecido! Arriscou então um dos seus movimentos preferidos: do rond de jambe, trouxe o pé lá atrás em um coupé en dehors e arriscou um developpé bem alto. Perfeito! Ela ainda conseguia!

Não teve dúvidas: pegou a mochila, colocou nela as sapatilhas e todo o material das aulas de dança, e deu uma conferida rápida no celular. Ainda tinha tempo. Tinha todo o tempo do mundo. O corpo de baile estaria ensaiando durante toda aquela tarde. Ainda que fora de forma, ainda que tropeçasse nos passos, nas palavras, nos gestos, ainda que tão insegura e com medo de uma nova queda: ela voltaria a dançar. Ela voltaria a vê-lo, e quem sabe mesmo voltaria até a ensaiar com ele alguns passos. Porque era só assim que tudo fazia sentido. Era só assim que valia a pena viver. Apesar de todo risco. Apesar de toda queda.

Passou apressada pela porta, deixando-a bater sem querer, e nem viu quando a caixa de grampos de cabelo caiu no chão. Não tinha mais importância. Dançaria de cabelos soltos. Dançaria descalça. Dançaria vestindo só a alma, e o coração. Dançaria.
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