Ela vê o céu escurecer
devagar e as primeiras estrelas aparecerem, aquele tom de azul que sempre foi o
seu favorito. Mas hoje a lua se ri dela. Sabe, só aquela linha fina, aquele
sorriso do gato de Alice, de quem sabe de todas as coisas mas não vai dizer
nenhuma delas. Mas ela só quer saber...
Quais serão as palavras mais
certas? Os passos mais adequados? O movimento mais pertinente? O gesto mais
significativo? A bailarina hoje está perdida. Descoordenada. Desorientada. Hoje
ela é apenas humana, e está sentada na plateia, à espera. De que as cortinas se
abram. De que uma luz qualquer se acenda. Fora, e dentro dela.
Ela sabe que deveria ter
esperado. Esperado o tempo dele. O tempo dos seus passos, da sua respiração, do
abrir e fechar dos olhos dele, ela deveria ter esperado, ela deveria. Mas ela
preparou o salto cedo demais, e o impulso foi tanto, e a vontade era tanta, que
ele não conseguiu segurá-la depois daquela sequência de glissade e grand jeté.
Os braços dele ficaram no ar. Ela foi de encontro ao linóleo. O pas de deux
estava arruinado.
As vaias do público. As
luzes se apagando. As cortinas se fechando atrás dela. Os passos dele atravessando
a coxia e desaparecendo, sem ousar olhá-la nos olhos. E aquela dor, que de tão
grande por dentro, transbordava e também doía por fora, e sufocava. As lágrimas
que ela não conteve. Por dias, e dias.
Decidiu nunca mais voltar
a dançar. Os pés sempre machucados, as torções e as dores constantes, e a cada
vez que ia ao chão, a dor era maior, e maior. E aquela tinha sido a maior dor
de toda a sua vida, a maior das quedas. Decidido. Não voltaria mais a dançar. I won't dance, don't ask me. 'Cause my heart
won't let my feet do things that they should do.
Meses se passaram, e ela
ia murchando aos poucos, perdendo a beleza, o brilho. A vontade de viver. A
saudade dos palcos, daquelas luzes todas. A saudade do público, dos aplausos,
das flores ao fim de cada espetáculo. A saudade da maneira como se sentia quando
dançava, daquela eletricidade toda percorrendo o seu corpo, a saudade de
sentir-se viva, imortal sob as luzes. Infinita. A saudade dele. Acima de tudo,
a saudade dele.
Ela deveria ter
esperado... deveria ter esperado... antes que a queda acontecesse... antes que
ele lhe virasse as costas... que as luzes se apagassem... que as cortinas se
fechassem atrás dela... antes que... e agora ela não sabia o que fazer para
alcançá-lo outra vez... tinha sido tão impulsiva, e tão burra... ela nem sabia
mais se ainda sabia dançar... One day I’m
gonna find that light inside of me again... one day I’m gonna find the perfect
moves... one day I’m gonna find the perfect words... one day I’m gonna reach
you... I’m gonna reach you...
Apoiou-se na beirada da
mesa e começou a mover os pés, um depois do outro. Meia ponta, ponta, meia
ponta, desce. Meia ponta, ponta... espantou-se consigo mesma quando viu a ponta
do pé direito riscar o chão num semicírculo e desenhar um rond de jambe
perfeito. Ela não tinha se esquecido! Arriscou então um dos seus movimentos
preferidos: do rond de jambe, trouxe o pé lá atrás em um coupé en dehors e
arriscou um developpé bem alto. Perfeito! Ela ainda conseguia!
Não teve dúvidas: pegou a
mochila, colocou nela as sapatilhas e todo o material das aulas de dança, e deu uma
conferida rápida no celular. Ainda tinha tempo. Tinha todo o tempo do mundo. O
corpo de baile estaria ensaiando durante toda aquela tarde. Ainda que fora de
forma, ainda que tropeçasse nos passos, nas palavras, nos gestos, ainda que tão
insegura e com medo de uma nova queda: ela voltaria a dançar. Ela voltaria a
vê-lo, e quem sabe mesmo voltaria até a ensaiar com ele alguns passos. Porque
era só assim que tudo fazia sentido. Era só assim que valia a pena viver.
Apesar de todo risco. Apesar de toda queda.
Passou apressada pela
porta, deixando-a bater sem querer, e nem viu quando a caixa de grampos de
cabelo caiu no chão. Não tinha mais importância. Dançaria de cabelos soltos.
Dançaria descalça. Dançaria vestindo só a alma, e o coração. Dançaria.
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