sábado, 17 de outubro de 2015

Parem este mundo perfeito que eu quero descer!

“Are you sure what side of the glass you are on?”
Nine Inch Nails

Hoje me entristeci vendo na tevê uma menina extremamente linda e talentosa, e já devidamente notada, com uma luz linda, olhos e sorriso extremamente apaixonantes, inteligência e expressividade absolutamente encantadoras e fluentes, procurando pertencer e se encaixar adequadamente, sem erros ou riscos, quando entregaram um pincel em sua mão e lhe permitiram rabiscar uma parede. Ela procurou o que havia de mais limitado e quadrado em toda a parede: o quadradinho do interruptor de luz, que por sua vez estava dentro de outro quadrado perfeitamente padronizado, adequadamente encaixado em toda a estrutura daquela parede igualmente padronizada, quadrada, e branca. E coloriu aquele quadradinho. Completa e perfeitamente.

Vivemos neste mundo de aparência insanamente perfeita, buscando sempre mais desta mesma, bem, perfeição. Estampando sempre sorrisos e maquiagens e cabelos perfeitos, com chapinhas perfeitas, em imagens perfeitas, em redes sociais perfeitas, em compartilhamentos perfeitamente curtíveis, por trás dos quais levamos uma vida perfeitamente insatisfeita, e infeliz. Um mundo em que se algo ou alguém nos interessa de maneira extremamente viva, intensa, passional, e nos desperta qualquer espécie de comportamento não padronizado, é porque estamos loucos, e precisamos nos tratar. Um mundo onde temos cada vez mais motivos para nos tratar, cada vez mais remédios disponíveis, cada vez mais transtornos mentais sendo descobertos, e cada vez mais diagnósticos perfeitamente imprecisos. Porque devemos ser razoáveis. E, se possível, rasos. Devemos nos adequar a um padrão cinzento e morno de comportamento. Devemos nos encaixar na sociedade de maneira correta, de preferência em um formato mental que seja pouco ou nada mutável, porque assim fica mais fácil de lidar, de marchar adiante sem maiores questões, sem exaltações, de maneira que não precisemos sequer pensar demais para realizar o que quer que seja. De maneira que governar, manipular e lucrar desonestamente seja tarefa relativamente fácil.

Faz-se notar, de maneira ligeiramente curiosa e sutil, que são justamente as paixões intensas que nos arrancam do lugar, e que nos movem na direção de algum progresso. Toda espécie de criatividade nasce de alguma paixão, de algum tipo de deslize precipitado, de um caminho que alguém tentou traçar de maneira diferente na direção de um desejo intenso por algo, ou por alguém. Somos todos frutos do mais puro tesão. Eu, você, aquelas formiguinhas no seu pedaço de bolo e na sua xícara de café. E o fato é que vivemos, sistematicamente, tentando cercar riscos, traçar rotas seguras, minimizar erros que nos levariam a caminhos diferentes e criativos, encaixotar mentes brilhantes que poderiam vir a mudar alguma coisa de forma positiva, se ao menos as deixassem em paz com suas paixões e obsessões, aquelas que não ferem a ninguém. Se ao menos elas mesmas conseguissem deixar-se em paz. Se não houvesse culpa no tesão. Se não houvesse risco no desejo. Se não houvesse uma condenação implícita em cada pequeno deslize. Em cada tentativa fracassada de sair da segurança e do conforto das rotas conhecidas. Se cada impulso arriscado não fosse chamado de loucura, e se cada um desses loucos perigosos não fosse imediatamente diagnosticado e medicado. Para o seu próprio bem. Para o bem da sociedade. Se cada um desses loucos pudesse ser valorizado por tudo aquilo que realmente os caracteriza. Se a essência daquilo que os caracteriza não fosse composta pela mais pura, e insana, coragem. Se o mundo não precisasse tão desesperadamente dos erros, e dos desajustados e desmedidos, para dizer-se são. E então seguir, às custas deles, progredindo. Se conseguíssemos, enfim, admitir que toda regra inclui necessariamente aquilo a que chamamos erro, e todo progresso, o que chamamos desvio.


“And it’s all right where it belongs.” Está tudo certo. Sigamos encaixotando Dom Quixotes. Estamos exatamente onde deveríamos estar. Da maneira como deveríamos estar. Ajustados. Perfeitamente ajustados. Ou procurando, loucamente, nos ajustar. Pois parem. Parem este mundo perfeito. Porque eu quero descer.

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